Adriana Biller Aparicio & Daniela Skromov de Albuquerque
O termo alteridade significa “ser outro”, “colocar-se no lugar do outro”. A modernidade, no entanto, criou a ilusão da homogeneização do Sujeito, distanciando-o e racionalizando-o para melhor atender a seus processos de eficientização. Assim, acabou por afastá-lo da relação com o “outro”, buscando transformar esse “outro” em “si mesmo”.
Nesse sentido, a reexistência/resistência trata das possibilidades de se vivenciar plenamente como ser humano e como coletividades, superando a solidão solipsista. Nenhum homem é uma ilha: o cuidado com o outro e com o entorno é também o cuidado de si. O rosto do outro me comove (deveria comover) e aciona (deveria acionar) em mim o imperativo ético humano primeiro, que é aliviar seu sofrimento, como nos lembra o filósofo Emmanuel Levinas.
A solidão é estruturante do capitalismo predatório, que tem como uma de suas principais consequências a produção de expurgos e dejetos, que são coisas e pessoas. Coisas que destroem: lixo, desmatamento, poluição, destruição da Pachamama e também de pessoas, que vagam em sofrimento sem ter a que pertencer, em busca de uma vida melhor.
Na urgência de se pensar as situações concretas de violência e opressão que assolam a realidade social diversa e plural, o eixo O Direito de Existir busca trazer um olhar emancipatório, que se opõe à visão meramente instrumental e antropocêntrica do mundo. Ao agregar filmes que tratam da resistência – dos povos originários, refugiados, das pessoas com deficiência –, a 13ª Mostra Ecofalante de Cinema contribui para a ressignificação do olhar para os problemas da contemporaneidade. Supera-se, assim, a arte voltada ao “Sujeito Universal” moderno, que oculta a histórica ideologia de cunho liberal burguesa que tradicionalmente exclui as demandas das mulheres, dos povos indígenas e a proteção do meio ambiente da sua construção. Considerando a sub-representação de tais grupos na cena pública, o que gera desigualdades no acesso aos bens necessários à vida digna, o eixo apresenta-se como uma lanterna de visibilização do “oculto”; mas, como bem lembrou Caetano Veloso, era simplesmente o “óbvio”.
Com o intuito de promover um espaço interdisciplinar de reflexão e diálogo, com amparo do sensível, que é a arte, quer-se aqui destacar a importância desses sujeitos excluídos e a necessidade de enfrentamento a todos os tipos de violência e opressão, os quais, apesar das suas diferenças, têm como pano de fundo e suporte o capitalismo predatório, que só quer devorar coisas e pessoas. De tal forma, a articulação dos diversos filmes viabiliza pontes para se pensar conjuntamente em um mundo aberto, plural, democrático e igualitário.
É um convite para acompanhar as narrativas dos diversos atores sociais, que ora em primeira pessoa, ora enfocados no olhar de terceiros, nos contam sobre seus locais, subjetividades e formas de vida. Eles nos mostram a riqueza da diversidade e a urgência de respeitá-los em suas reexistências e, com eles, por que não?, aprender.
No estadunidense Não Te Vi Ali (I Didn’t See You There, 2022), o cineasta Reid Davenport, um homem adulto, autônomo e cadeirante que vive só e longe da família, nos traz para o seu mundo e, ao estritamente utilizar uma câmera de ponto de vista subjetivo, que emula sua visão pela perspectiva da cadeira de rodas ou de seus pés, nos convida a nos colocarmos em seu lugar. Por meio desse dispositivo, Davenport nos permite mergulhar em sua rotina e testemunhar como é viver em sua condição. Em certo momento do longa, a chegada inesperada de uma tenda de circo em frente ao seu apartamento o faz revisitar P. T. Barnum e seu Circo de Horrores, e refletir sobre seu legado. Diz ele: “À medida que a sociedade ficava incomodada com o Show de Horrores, ele pareceu ir desaparecendo. Mas, na verdade, só se transformou em outra coisa. Eu sinto isso quando me encaram e quando não sou visto.” Ele nos lembra, assim, que as barreiras não são apenas físicas, mas também atitudinais, ao revelar que lugares acessíveis são desejáveis, mas não deixam de ser também “purgatórios éticos”, uma vez que, mesmo em uma sociedade “adaptada”, o capacitismo ainda impera.
Já O Povo da Baleia (One with the Whale, 2023), de Pete Chelkowski e Jim Wickens, nos apresenta a realidade de uma família siberiana Yupik, povo indígena da pequena Ilha de São Lourenço, no Mar de Bering. A caça de baleias tem importância vital para os Apassingok, como subsistência e como cultura. Essa tradição, entretanto, não parece mais ter lugar na contemporaneidade. Chris Agra Apassingok se tornou a pessoa mais jovem a arpar uma baleia para a sua aldeia no Alasca e, orgulhosa, sua mãe compartilhou a notícia no Facebook, recebendo milhares de ataques. Ao lutar pela sobrevivência como faziam seus antepassados, a família tem de enfrentar o ódio colonialista de um pseudoambientalismo conservador, que tenta fazer terra arrasada de toda ressignificação e reexistência cultural. Esses ativistas imediatistas não conhecem nada da realidade dos Yupik, sua cultura, seu lugar no mundo, mas se veem no direito de julgar. Como preservar uma identidade diante de tanta destruição? “A baleia alimenta nosso corpo, nossa alma e nos conecta aos nossos antepassados” é a síntese perfeita, dita pela matriarca da família, Susan Apassingok, diante do ódio do opressor.
No holandês O Jogo Mental (The Mind Game, 2023), por sua vez, conhecemos o migrante refugiado afegão Sajid Khan Nasiri, ou simplesmente SK. Ele fugiu sozinho de seu país quando tinha apenas 14 anos e por dois anos teve uma jornada acidentada e perigosa até chegar à Bélgica em busca de asilo, o que resultou em uma nova luta. Sua trajetória parece inimaginável, e talvez por isso SK tenha captado a travessia em sua câmera de celular e assine a direção do documentário junto com Eefje Blankevoort e Els van Driel. Ele nos oferece sua perspectiva e nos mostra quão limitada é a possibilidade de se colocar no lugar do outro, mesmo que se tente: “Quando você está correndo para salvar sua vida, a realidade é bem pior do que se pode ver [em um filme]”. Sua reflexão nos faz recordar Gayatri Spivak quando ela, em Pode o subalterno falar? (1985), nos alerta de que tentar se colocar no lugar do outro não é a mesma coisa que estar no lugar do outro.
Cada um de nós faria de tudo para existir, mas esse direito é negado a alguns – impossível não ver semelhança entre SK e os jovens pretos periféricos do Brasil que apanham e são mortos diariamente pela polícia, assim como é impossível conhecer a história dos Yupik, como o pai de Chris Apassingok, que é preso por caçar, e não nos lembrarmos dos “marginais” (“quase pretos de tão pobres”) que são dragados rotineiramente para o sistema criminal. As margens são escórias das quais o sistema busca se livrar. O Haiti é o mundo todo.
A relação entre território e tradicionalidade cultural também é tratada na coprodução queniana-estadunidense Entre as Chuvas (Between the Rains, 2023), de Andrew H. Brown e Moses Thuranira, porém de uma forma microscópica e afiada. No longa, o povo Turkana, originalmente nômade, enfrenta confrontos brutais com grupos rivais e animais selvagens que caçam sua pecuária. Nessa comunidade está Kolei, um jovem pastor de cabras. Diante daquele cenário, ele questiona seu futuro e sua identidade. Aparentemente desvinculado de uma situação colonial, o convite é para nos encontrarmos com nosso próprio etnocentrismo e ansiedades, para pouco a pouco nos mostrar o quanto do colonizador vive em nós. Por mais “distante” que seja essa comunidade cultural, ela é atravessada pelas emergências de nosso tempo, inclusive a climática, pois a situação é exponenciada por um período de baixa pluviosidade recorde no norte do Quênia.
A necropolítica, o oposto da alteridade, é um Frankenstein que age despersonalizada e silenciosamente num movimento inercial resultante das ações destrutivas de séculos de capitalismo predatório, somadas à regência de poucos indivíduos egoístas que concentram em suas mãos ressequidas dinheiro e poder. Nesse contexto, os expurgos são automáticos e as eliminações de pessoas vistas como descartáveis, sistêmicas.
Podemos pensar a partir deste eixo tão poético e, ao mesmo tempo, concreto, que um mundo homogêneo é uma ficção que nos torna atomizadas/os, solitárias/os, infelizes e rumo à autodestruição; que promove a despersonificação e o desenraizamento. Como nos alertou Otávio Paz, para sermos livres não precisamos de asas, o que precisamos é deitar raízes. Parafraseando o jovem Chris Apassingok em O Povo da Baleia: Somos parte terra, parte água, e estamos fatalmente enlaçados ao outro, rumo a um destino comum.
ADRIANA BILLER APARICIO é Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha (Espanha). É fundadora do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica da UFSC, integra o Observatório de Justiça Ecológica (OJE/USFC) e atualmente se encontra em Santiago (Chile) em estudos de pós-doutorado no Centro de Estudos Constitucionais da Universidade de Talca, pesquisando Povos Indígenas e Emergência Climática, com bolsa do CNPq.
DANIELA SKROMOV DE ALBUQUERQUE é Defensora Pública do Estado de São Paulo desde 2007 e também fundadora e diretora de Relações Institucionais do Desinstitute, organização não governamental que visa a fomentar políticas públicas de cuidado em liberdade em saúde mental. Recebeu menção honrosa no Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em 2012, dentre outros prêmios de Direitos Humanos.