Texto sobre filmes do Panorama Internacional Contemporâneo da 12ª Mostra Ecofalante
Por Ladislau Dowbor*
Os documentários que são apresentados nesta 12ª Mostra Ecofalante, na dimensão econômica, lançam muita luz sobre alguns dos nossos principais desafios. Não se trata de economês. A economia é uma dimensão de tudo o que fazemos. E os interesses econômicos, gostemos ou não, estão no centro dos nossos desafios – geram oportunidades, mas também as crises estruturais que hoje enfrentamos. O mundo está procurando novos rumos.
Basicamente, a economia se globalizou, mas não temos governo mundial. O resultado é o poder descontrolado das corporações, e o caos crescente no planeta. Passamos de 8 bilhões de habitantes – quando nasceu meu pai, éramos 1,5 bilhão; é meu pai, não é tão longe –, e todos querendo mais, sem se dar conta dos limites da natureza. Comportamo-nos como gafanhotos em um campo de trigo, e a cultura que domina é que quem arrancar mais deve ser admirado. Temos tecnologias que permitem que façamos coisas em escala gigantesca, sem a governança correspondente: a revolução digital mudou o mundo, mas as instituições e os valores são do século passado. O desajuste é sistêmico.
A revolução digital em curso nos leva a um novo modo de produção. Trata-se de muito mais do que uma “indústria 4.0”, como apresentado em Davos e outros centros de irradiação de teorias. A revolução digital é tão profunda, em termos de impactos estruturais, como foi a revolução industrial há dois séculos. A ONU sugere que os nossos problemas não resultam de defeitos no sistema, e sim do fato de que é o próprio sistema que se tornou disfuncional.
Encontramos por toda parte sugestões de um “novo pacto global”, ou “pacto verde global”. Muitos falam na necessidade de um “novo Bretton Woods”, o pacto que definiu o marco institucional econômico no fim da Segunda Guerra Mundial, com a ONU, o FMI, o Banco Mundial, o dólar como moeda de reserva, o poder hegemônico dos EUA. Nada disso está funcionando hoje: na realidade, funcionou apenas por 30 anos, e nos países ricos, no chamado Ocidente. A partir dos anos 1980, entramos na deriva geral.
Enquanto a cacofonia mundial nos indica incessantemente quem são os culpados, quem devemos odiar, a realidade é que não há saída no quadro do marco institucional presente, com 193 países buscando os seus rumos frente à catástrofe econômica, social e ambiental, sem que haja clima para a construção de uma nova ordem econômica mundial. O desafio que enfrentamos é bem resumido na expressão “slow-motion catastrophe”, catástrofe em câmera lenta.
Não é falta de saber o que deve ser feito. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, com horizonte de 2030, nos colocam 17 grandes objetivos, detalhados em 169 metas, e inclusive com mais de 200 indicadores para medir os resultados. Temos também todas as tecnologias necessárias para identificar onde estão os pontos críticos, como mudar a base energética, como evoluir para a agricultura sustentável, como assegurar renda básica, como democratizar a comunicação, como generalizar conhecimentos avançados em todas áreas.
E temos, e isso é fundamental, os recursos necessários. As teorias da austeridade representam uma imensa farsa, uma defesa de interesses privados que carecem de legitimidade. Em termos teóricos, não se trata de ciência econômica, e sim de justificativas da apropriação indébita de riqueza. A conta é simples: o valor dos bens e serviços produzidos anualmente, o PIB mundial, atingiu no ano passado 100 trilhões de dólares, o que, dividido pela população mundial, representa 4.200 dólares por mês por família de 4 pessoas, ou seja, um pouco mais de 20 mil reais. O que hoje produzimos é suficiente para todos terem uma vida digna e confortável. O nosso problema não é econômico, no sentido de falta de recursos: é um problema de organização política e social.
É o caso também do Brasil, ainda que em nível inferior: os 10 trilhões de reais do nosso PIB equivalem a 15 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Bastaria reduzir em alguns porcentos as fortunas do topo da pirâmide para assegurar a todos uma vida digna e confortável e, em todo caso, para eliminar o dramático sofrimento dos que carecem do mínimo. Lembrando que, no caso do Brasil, só de grãos produzimos mais de 4 quilos por pessoa por dia, e temos 33 milhões de pessoas passando fome e 125 milhões em insegurança alimentar. Isso não é pobreza, é um escândalo moral e político.
Esse quadro de referência estrutural que apresentamos em poucas linhas é importante para entendermos os esforços de explicitação dos nossos dramas que encontramos nos documentários de área econômica que nos traz esta 12ª Mostra Ecofalante. Eles focam problemas diferentes, mas convergem no que hoje é consenso mundial: temos de construir uma sociedade economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. No conjunto, a mera descrição dos dramas em diversos setores aqui apresentados nos faz pensar nos limites do absurdo do que estamos construindo.
O Sonho Americano e Outros Contos de Fadas apresenta a Disneylândia como um universo mágico aonde as pessoas vão aos milhões para se sentirem em outro mundo, onde tudo é sorriso e faz-de-conta, fazendo-nos viver uma outra realidade em vez de transformar a que temos. Ao detalhar o funcionamento da máquina de gestão que está por trás dos bonecos, descobrimos o bilhão de dólares de subsídios públicos que a Disney conseguiu – dinheiro dos impostos –, bem como o salário dos executivos, na faixa de 60 milhões de dólares anuais, enquanto os trabalhadores cantam e sorriem para os visitantes, mas recebem salários de miséria. Os dividendos distribuídos aos acionistas fazem parte da fórmula. A força política do grupo permitiu obter isenção de impostos de 45 anos em Anaheim, onde funciona a Disneylândia. Como dizem alguns dos entrevistados, é uma questão moral. E, como sugere um professor de Harvard, eles deveriam “fazer um lucro decente de forma decente” (Making decent profit decently).
Os outros documentários não buscam desfazer sonhos, vão diretamente para a realidade. Amor e Luta em Tempos de Capitalismo mostra a perplexidade da sociedade francesa. Um país rico, que produz amplamente o suficiente para uma vida muito próspera, vive na ansiedade, sentindo os absurdos de uma sociedade high-tech, das manipulações publicitárias, da nova aristocracia financeira que impõe a permanente corrida para o “sucesso”, enquanto a população busca resgatar os valores do cotidiano. Estamos aqui na era Macron, com os Coletes Amarelos, os protestos jovens, e um sentimento de desorientação e de ansiedade. O que transparece com força é um sentimento de perda de controle das próprias vidas e uma indignação com a arrogância das elites. O resgate da dignidade humana vai muito além das necessidades econômicas.
O Retorno da Inflação traz outra dimensão da perda de qualidade de vida das famílias: gera um clima permanente de aflição, de não poder se organizar para fazer face ao cotidiano. Os exemplos permitem desmontar a farsa de que os preços apenas “sobem”, como se não houvesse quem os elevasse na origem. Na era dos gigantes corporativos, a concorrência é um mecanismo pouco presente, os grupos se entendem entre eles, gerou-se o poder de fixar preços (the pricing power of corporations). Fica evidente como grandes grupos elevam o preço da energia, o que vai repercutir numa onda mais ampla, na medida em que a energia faz parte de quase todos os setores. Igualmente importante é o exemplo da privatização da saúde, também com controle de grupos financeiros, que aproveitam e precificam a angústia das pessoas com a saúde própria e dos familiares. A inflação não “acontece”, é construída, e constitui um dreno financeiro por parte das corporações, e contos de fadas sobre o papel dos juros.
A Máquina do Petróleo mostra o funcionamento de uma máquina econômica poderosa, construída em cima de um produto natural: ninguém produz petróleo, mas companhias gigantes controlam a extração, a transformação e a enorme gama de produtos de nosso cotidiano que dele dependem, a começar pelos plásticos. O petróleo é um bem que herdamos da natureza, que permitiu imensos avanços econômicos, mas que também gera um desastre ambiental. Entre o lucro a curto prazo e o desastre a longo prazo, as corporações não hesitam. Como herança de milhões de anos de transformação de matéria orgânica, pertencente à terra, seria natural que o petróleo fosse utilizado para o bem-estar da sociedade e sem estar a serviço do que no filme é apresentado como Self-serving Capital, capital a serviço de si mesmo. E o desastre ambiental vai muito além do clima, com plástico e inúmeros resíduos químicos contaminando todo o planeta, inclusive nossos corpos. É um exemplo impressionante de mismanagment, de má-gestão.
“The Grab”, título em inglês do filme norte-americano A Apropriação, é um título forte: sugere uma apropriação indébita e violenta. Filme muito poderoso, apresenta uma dinâmica menos conhecida, mas essencial: a guerra pela água e pelos alimentos e, consequentemente, pelo controle do solo agrícola. Com 8 bilhões de habitantes e formas de produção, transformação, distribuição e consumo que geram imenso desperdício, estamos frente a um dilema planetário. Os gigantes do agro usam a água sem preocupação, reduzindo no planeta todo as reservas subterrâneas (lençóis freáticos) acumuladas durante muito séculos e gerando crises hídricas nos mais diversos países, a começar pelos Estados Unidos. Grandes corporações compram terras e praticam monocultura intensiva até esgotar o solo e as reservas de água, mudando então para outras regiões. O que o filme mostra é como estamos construindo uma catástrofe planetária. O mundo produz alimentos suficientes, um quilo por pessoa por dia, só de grãos. Mas os grãos são cada vez mais para a pecuária, para satisfazer o consumo mais sofisticado de carne, enquanto quase um bilhão de pessoas passa fome, e 2,3 bilhões estão em insegurança alimentar. Cerca de um quarto delas são crianças. As tensões políticas e as guerras regionais estão cada vez mais centradas na luta pelo acesso à terra com água. Um quilo de grãos exige milhares de litros de água. É o que já chamamos de “ouro azul”.
Há uma convergência muito forte entre os documentários, em particular porque apresentam desafios em áreas diferentes – como a inflação, o petróleo, a agricultura –, mas que convergem para a compreensão de como gigantes corporativos, organizados para maximizar dividendos no curto prazo, se divorciaram da busca do bem comum, da proteção ambiental, não hesitando inclusive em gerar catástrofes no médio prazo, conquanto consigam lucros. E investem pesadamente na comunicação, no green washing, na cosmética corporativa. O ESG (Environment, Social, Governance) está presente em todos os departamentos de relações públicas e de comunicação corporativas, mas não no essencial, que é para onde vão os recursos. Aqui, o que interessa é o lucro no curto prazo. Esse divórcio entre a lógica corporativa e os interesses da sociedade e da natureza constitui um denominador comum de tantas áreas, em particular as finanças, a comunicação, o comércio de informações pessoais, o rentismo sobre produtos naturais.
O poder de documentários como esses, apresentando casos concretos, com imagens e análises, é de preencher um gigantesco vazio que tantas angústias nos causa: a incompreensão das origens de tanta desgraça, quando temos tantos avanços tecnológicos e tanta riqueza no planeta. O problema, voltamos a dizer, não é de falta de recursos, tecnológicos ou financeiros, e sim de quem os controla. Os documentários não se resumem a apresentar os dramas, mostram como são gerados.
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*LADISLAU DOWBOR é economista e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S”. Autor e co-autor de mais de 40 livros, toda sua produção intelectual está disponível online na página dowbor.org.