Texto sobre os filmes da temática Biodiversidade do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Fabio Scarano*
“Não é o homem que costurou o tecido da vida. Ele é só um fio. Tudo que ele fizer ao tecido, ele faz a si mesmo”. A reflexão do Chefe Seattle, apresentada nas últimas cenas de Birds of America (Jacques Lœuille, França, 2021), ecoa por todos os oito filmes que tratam da crise da biodiversidade na 11ª Mostra Ecofalante de Cinema. Birds of America pega emprestado o título do livro de John James Audubon (naturalista e ilustrador do início do século XIX), bem como suas expressivas ilustrações de aves (hoje, na maioria extintas), para narrar a degradação e perda de biodiversidade da bacia do rio Mississippi e da América do Norte. O filme dá a medida do que hoje a ciência reconhece como a sexta onda de extinção de espécies – aliás, a primeira a ser causada por uma única, o Homo sapiens.
Essa onda de mortes – um milhão de espécies se encontram ameaçadas de extinção, de acordo com o painel científico das Nações Unidas para a biodiversidade (IPBES) – ameaça a própria existência humana. Animal (Cyril Dion, França, 2021) revela esse fato pelo olhar dos adolescentes ativistas Bella e Vipulan: a nossa espécie precisa das outras tanto para sobreviver como para viver bem. Logo, a natureza não pode ser tratada nem como commodity nem como obstáculo a ser vencido – como muitos infelizmente fazem com a Amazônia.
Como chegamos a esse ponto? O didático e comovente Nosso Planeta, Nosso Legado (Yann Arthus-Bertrand, França, 2020) narra a história da Terra e da vida, mas quando passa a falar dos últimos 150 anos – o tempo do petróleo e da Grande Aceleração – o tom muda. Declínio, degradação, doenças, injustiças. Usando a analogia do Chefe Seattle, estragando o tecido, nosso fio humano apodrece. Tal cenário se torna próprio do mar e da terra. No mar, onde a vida começou, Do Mar Selvagem (Robin Petré, Dinamarca, 2021) mostra focas, baleias e golfinhos feridos, mutilados e mortos por petroleiros e outros navios de carga e turismo, pela pesca industrial e pela imprevisibilidade de um clima em mudança. Nosso Planeta, Nosso Legado e Animal mostram ainda tratos digestivos congestionados por dejetos plásticos em albatrozes e golfinhos em decomposição. Em terra, fatores de destruição incluem desmatamento e mineração, que, em Gritos de Nossos Ancestrais (Rebecca Kormos e Kalyanee Mam, EUA/Mexico, 2020), tiram não só a vida de chimpanzés, mas também anulam o modo de vida da população humana nativa da Guiné que coabita o território em harmonia com esses animais. Urbanização, agricultura e caça predatória também colaboram decisivamente para as extinções, como vemos se passar com a loba Naya em Naya – A Floresta Tem Olhos (Sebastian Mulder, Holanda, 2021), que precisa lidar tanto com paisagens totalmente alteradas na Alemanha como com pessoas cujo interesse é só individual e imediato. Birds of America aponta ainda monocultura e petróleo como vetores de extinção. Por trás de tudo isso, a ditadura do capital, os interesses corporativos e políticos, abismos de desigualdades (Animal). Nosso Planeta, Nosso Legado, por exemplo, nos informa que 1% da população humana possui tanto quanto os demais 99%.
Para evitar o pior precisamos conversar uns com os outros, independente de idade, de cultura, de espécie. O argumento em O Leopardo das Neves (Marie Amiguet e Vincent Munier, França, 2021) é que expulsamos a nós mesmos do paraíso, onde “bestas, humanos e deuses conduziam conversações uns com os outros”. No filme, um fotógrafo da vida selvagem e um escritor de livros de viagens se misturam à silenciosa natureza tibetana na busca de um encontro com uma leopardo-das-neves, a “rainha de veludo” do título em inglês (The Velvet Queen). Diálogo também é o que propõe Abubakar, empenhado em proteger e restaurar corais no Quênia, em Tengefu (Jessey Dearing, EUA/Quênia, 2020). Ele destaca a importância de educar e praticar o cuidado com os corais, para que os jovens não cometam os mesmos erros que hoje levam essas lindas e coloridas formas de vida marinhas a sofrerem o impacto das mudanças climáticas.
Sapiens?
Nos filmes, não há muito que sugira que nossa espécie mereça o título de “sapiens”. Pelo menos, nem todos os humanos merecem. A sapiência parece ser mais própria de uma minoria: humanos que não dessacralizaram a vida, como Abubakar e seus amigos e amigas “jardineiros de corais” no Quênia (Tengefu), ou ainda os guineanos que dividem de forma justa e gentil seu território, seus alimentos e suas vidas com chimpanzés (Gritos de Nossos Ancestrais). Sabedoria também têm os vários povos indígenas norte-americanos – muitos dos quais foram também extintos por ação dos “modernos”, os que se julgam sapiens. Em Birds of America, os nomes de vários desses povos são citados como mantras em uma das sequências que mais me marcaram nessa Mostra. Felizmente, temos modernos sábios também, tentando nos alertar sobre a nossa alienação para que nos regeneremos a tempo de evitar o pior. O francês Jean-Jacques Audubon, aos 18 anos, encantado com o rio Mississippi e a diversidade de aves da região, se renomeia John James e dedica o resto de sua vida a desenhar pássaros[1] cuja extinção ele antecipava diante da velocidade do dito progresso. A sabedoria jovem segue presente mais de duzentos anos depois, nas falas de Severn Suzuki (13 anos) no Rio 92 e, mais recentemente, de Greta Thunberg (15 anos), que nos são reprisadas em Nosso Planeta, Nosso Legado. Em Animal, o ativista Vipulan (16 anos) exalta a vida e a diversidade terrestre como “beleza única no universo” e diz que “nosso dever é preservá-la”. Bella (15 anos) afirma que “não podemos fazer a mudança a partir de um ódio aos humanos, mas sim de um ponto de vista em que nos enxergamos também como animais”.
Sim, como animais. Aos chimpanzés, “somos quase idênticos” (Gritos de Nossos Ancestrais). Sylvain e Vincent são como o leopardo-das-neves que tanto procuram: observam, espreitam, são pacientes, até engatinham (O Leopardo das Neves). “Somos como os lobos”, diz Bella (Animal). Claro que somos! Somos biodiversidade e não somos superiores às outras espécies. Faz sentido até nos fantasiarmos de animais em homenagem a eles, como as garotas vestidas de foca e coelho, nos trabalhos de conscientização ambiental (Do Mar Selvagem). Afinal, precisamos de “água fresca e ar fresco”, tal qual os corais (Tengefu). Como para os animais, para nós o essencial “são as crianças, o amor, o sexo, a morte” (Nosso Planeta, Nosso Legado). Somos também como as plantas. Nosso Planeta, Nosso Legado nos lembra de que elas conquistaram a terra vindas do mar e possuem a sofisticada tecnologia natural da fotossíntese: produzem oxigênio, formam solos, equilibram as águas, alimentam. Como diz Primo Levi, ao descrever o elemento carbono da tabela periódica: “quando aprendermos a fazer isso seremos como Deus, e teremos resolvido o problema da fome no mundo”. Plantas: deusas sagradas.
Sagrados também são os voluntários anônimos nos resgates e recuperação de focas, baleias, golfinhos e cisnes no norte da Europa (Do Mar Selvagem). O são Sylvain e Vincent, que passam longos dias e noites na altitude tibetana em busca do milagre de ver e documentar animais raros (O Leopardo das Neves) – busca tão ou mais desafiadora que procurar extraterrestres. São ainda as cientistas abnegadas, como a primatóloga Jane Goodall (Animal), cujas vidas se misturam às dos seres com os quais convivem e que estudam. Mais pessoalmente, ser presenteado com um filme dirigido pela cientista, primatóloga e querida amiga Rebecca Kormos (Gritos de Nossos Ancestrais) – ela também uma heroína, que não vejo há trinta anos –– só reforça minha fé na vida, no todo, nas forças sagradas e misteriosas que regem essa pequena esfera azul e verde, e nossa paradoxal espécie humana.
Paradoxal, de fato. Em Animal, quando Bella pergunta ao vaqueiro suíço – que conhece cada uma de suas vacas pelo nome e pelo olhar – o que ele sente na hora do abate, ele responde com seu choro. Quando Vipulan pergunta ao criador de coelhos em gaiolas “do tamanho de uma folha A4” se ele crê que os coelhos estão felizes, o momento é constrangedor, já que esse simples produtor é vítima de um mercado do qual ele depende para sobreviver. E o paradoxo da tecnologia? De um lado, o casal de crianças da remota altitude tibetana em O Leopardo das Neves em segundos ativam os “brinquedos” dos naturalistas estrangeiros: a playlist do celular de Vincent e o possante binóculo de Sylvain. Do outro lado, Naya – A Floresta Tem Olhos mostra tecnologia de última geração na forma de coleiras de geolocalização, sistemas de informação geográfica, ciência do comportamento ambiental, camera-traps. Toda essa tecnologia, mas para quê? Afinal, o que os humanos fizeram com o casal de lobos do filme, Naya e August – tornados urbanos, certamente contra suas vontades?
O Que Fazer?
Os filmes dão boas pistas. Regenerar, como os jardineiros de corais em Tengefu. Cuidar, como os voluntários em Do Mar Selvagem. Monitorar, como cientistas e pessoas interessadas pelos animais em Naya – A Floresta Tem Olhos e em Birds of America. Compartilhar, como fazem os guineanos com os chimpanzés em Gritos de Nossos Ancestrais. Substituir crescimento econômico por saúde, como nos ensina um cientista em Animal, já que não há saúde humana sem saúde dos ecossistemas. Informar e relembrar, como faz Nosso Planeta, Nosso Legado. Ter paciência, a “virtude suprema mais elegante e mais negligenciada”, segundo O Leopardo das Neves. Agir, como fazem os jovens ativistas em Animal. Aliás, esses jovens tocam no ponto. Vipulan diz que o movimento do qual faz parte entende que temos que parar o sistema, mas não tem proposta quanto ao que vem depois. Precisamos de uma “nova narrativa de como o nosso mundo poderia ser”, diz o adolescente. O pós-moderno derruba as narrativas existentes, mas também não propõe novas. Não creio tanto que precisemos de uma nova narrativa, mas sim de muitas. Não só uma, que emerja de todos os seres humanos – mas narrativas que envolvam a escuta também das abelhas, das águas-vivas, dos antílopes do Tibete, das aves, das baleias, dos chimpanzés, dos cisnes, dos corais, das focas, das formigas, dos golfinhos, do leopardo-das-neves, dos lobos, das plantas, dos peixes, das raposas, dos ursos. Temos que ouvir também o que narram a água, o fogo, a terra, o ar. Os espíritos, tanto dos vivos, humanos e não-humanos, como também dos mortos e extintos. Tudo, todas e todos, num grande parlamento, como sugere o filósofo francês Bruno Latour. É a mistura, à qual se refere Emanuelle Coccia em Metamorfose: “não somos habitantes da terra; habitamos a atmosfera. A terra firme é apenas o limite extremo desse fluido cósmico no seio do qual tudo comunica, tudo se toca e tudo se estende.” Na mistura desse tecido, somos só um fio – volto ao Chefe Seattle.
Com todas essas ações, é impossível não pensar no muito que há por se fazer no Brasil. Menos de 10% dos países (18 ao todo) abrigam 70% da diversidade biológica do planeta. Esses mesmos 18 países guardam também cerca de 50% dos idiomas hoje falados. Dentre esses, o Brasil é disparado o primeiro colocado em diversidade de espécies e um dos cinco primeiros em diversidade linguística, com seus quase 300 idiomas. A diversidade de espécies e a diversidade cultural andam juntas. O Brasil tem a maior megadiversidade biocultural do mundo, mas também tem a maior taxa de desmatamento, é o quarto maior emissor histórico de gases estufa (graças, na maior parte, a desmate e queima) e possui um triste histórico de violência contra indígenas, povos locais e ambientalistas que só tem se agravado. Os filmes aqui tratados, na sua maioria passados em países com bem menos diversidade que o Brasil, inspiram caminhos, diálogos e mudanças de atitude.
Não Estamos Sós
“A arte conecta o ser humano ao cosmos e aos poderes noturnos. Todavia, a arte não é um sonho. Ela é uma resistência à realidade”. As palavras de Audubon, em Birds of America, sugerem um forte papel para a arte na resistência à “necrorrealidade” do Brasil e do mundo. Como a beleza da arte pode ser tão dura ao revelar a realidade da perda? Assim como Birds of America, os filmes Nosso Planeta, Nosso Legado, Animal e Tengefu revelam essa realidade com imagens, mas também com muitas palavras. Gritos de Nossos Ancestrais, Naya – A Floresta Tem Olhos e Do Mar Selvagem o fazem mais através das imagens que das palavras. Todos mostram, cada qual a seu modo, que somos natureza, mas que essa natureza impõe limites.
“Renunciamos à liberdade, à autonomia e ao conhecimento ambiental perfeito”, nos explica Sylvain, em O Leopardo das Neves. E, pior, não satisfeitos, impusemos isso aos lobos de Naya – A Floresta Tem Olhos, aos gansos e focas de Do Mar Selvagem, aos coelhos e vacas de Animal. Por isso que esta cuidadosa seleção de filmes, ainda que nos revele muito sobre a vida, sobre o mundo e sobre as outras espécies, especialmente me ensinaram mais sobre mim mesmo (assim como Bella, em Animal, admite ser o caso consigo), sobre nós, Homo (não tão) sapiens, e sobre nós, biodiversidade.
Naya – A Floresta Tem Olhos relembra um velho ditado alemão: “na natureza, você nunca está só: enquanto seu par de olhos olham para a floresta, mil olhos olham para você de volta”. Na mesma lógica, a voz melancólica de Nick Cave ao violino de Warren Ellis no comovente final de O Leopardo das Neves nos lembra que “a natureza adora se esconder”. “Não estamos sós”, diz a música. De fato, nós humanos somos só um fio, na grande, diversa e colorida tapeçaria da vida.
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[1] O livro antológico Birds of America (Pássaros da América) reúne mais de 400 ilustrações.
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*FABIO SCARANO é engenheiro Florestal, Ph.D. em Ecologia e Professor Titular da UFRJ. Atuou nos painéis da ONU para o clima e biodiversidade e foi dirigente no Jardim Botânico do Rio, na Conservação Internacional e na Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável. Recebeu dois Prêmios Jabuti de Literatura na área de Ciências Naturais. Seu livro mais recente é Regenerantes de Gaia (Dantes Editora, 2019) no qual, entre outras coisas, dá vazão à sua paixão pelo cinema.