O texto e a entrevista a seguir são parte do catálogo da 3ª Mostra Ecofalante, que em 2014 homenageou Washington Novaes
O Sábio da Tribo
Por André Trigueiro*
Quando Washington Novaes abandonou a péssima ideia de ser advogado – nada contra a profissão, mas é difícil imaginá-lo realizando tão bem outros ofícios que não aqueles relacionados à área da comunicação – e se aventurou no jornalismo, o Brasil tinha vergonha de sua exuberância ambiental (será que isso mudou?).
Desenvolvimento era sinônimo de fumaça, a Amazônia precisava ser ocupada e explorada sem trégua, acelerava-se o crescimento desordenado das cidades, e São Paulo “não podia parar”. Era uma época em que não se aprendia jornalismo em faculdades de comunicação – elas sequer existiam – e uma notável geração de jornalistas “criados nas redações” emprestava uma nova identidade à imprensa nacional, menos provinciana e mais ousada na busca de novas linguagens e pautas.
“Naqueles tempos a gente achava o Washington meio esquisito. Quando a maioria de nós só pensava em driblar a censura e denunciar as mazelas do regime militar, lá vinha ele com aquelas pautas de meio ambiente.
Com o tempo, a gente viu que o Washington foi um pioneiro, ao perceber primeiro esses problemas”, disse certa vez Zuenir Ventura, outro veterano desta geração de ouro do jornalismo, num depoimento resgatado aqui de memória durante um debate em Goiás.
Era uma época em que não havia licenciamento ambiental, ministério ou secretarias (estaduais ou municipais) de meio ambiente, ninguém falava em “ecologicamente correto” muito menos em “desenvolvimento sustentável”. Não havia ISO 14.000, produtos certificados ambientalmente, Partido Verde ou Greenpeace. Meio ambiente era assunto de “bicho grilo” ou “alienados” – para não mencionar outras denominações bem mais ofensivas, que tentavam desqualificar quem ousasse lhe dar um tratamento mais sério. Washington pertence ao seletíssimo grupo de jornalistas que pavimentou com coragem esse caminho na direção de uma nova consciência dentro das redações.
Por onde passou, “contaminou” os colegas de profissão com essa estranha determinação em denunciar as mazelas de um modelo de desenvolvimento predador, de curto prazo e condenado ao fracasso por destruir os recursos naturais não renováveis fundamentais à vida e à própria economia. Inteligência, credibilidade, boas fontes e um texto irretocável (direto, incisivo, recheado de dados invariavelmente contundentes) foram aliados preciosos para abrir, aos poucos, os merecidos espaços que conquistaria ao longo dessa jornada.
Com passagem pelos mais importantes veículos de comunicação do Brasil, exercendo as funções de repórter, editor, produtor, comentarista, articulista, diretor e consultor, Washington Novaes conquistou respeito e admiração pela farta produção multimídia num filão carente de especialistas. Desde 1997 seus artigos no jornal O Estado de São Paulo vêm inspirando o primeiro escalão da República, parlamentares e ONGs, despertando o senso de urgência onde havia desleixo e omissão. Não por acaso, foi ele o escolhido para estruturar as bases de discussão da Agenda 21 brasileira, um imenso receituário de como alcançar a utopia da sustentabilidade num país com o tamanho e a complexidade do Brasil.
De terno e gravata cobrindo diferentes Conferências da Organização das Nações Unidas (ONU), nas diversas incursões pelo tão castigado e querido Cerrado ou num furgão com uma numerosa equipe de TV num tour por vários países da Europa – para acompanhar a destinação final do lixo no velho continente – Washington sempre praticou a mais nobre de todas as ocupações possíveis dentro do jornalismo: a de repórter. Ser testemunha da História, estar perto dos acontecimentos, sentir o “cheiro da notícia” afere inquestionável credibilidade a quem tem a missão de registrar os fatos mais importantes do nosso tempo. Mas quando o assunto é meio ambiente, os profissionais de imprensa estão sujeitos a certos riscos. Foi o próprio Washington quem denunciou em 1996, num encontro com jornalistas em São Paulo, o que está em jogo nessa área do jornalismo: “Acho que a questão ambiental é ameaçadora para os jornalistas na medida em que os jornalistas têm uma vida pessoal muito pouco adequada em termos ambientais. O jornalista, em geral, bebe muito, fuma muito, leva uma vida extremamente competitiva, apressada, estressante, onde a disputa pelo poder está sempre muito presente dentro e fora do trabalho, mora em cidades com problemas ambientais gigantescos, todas essas coisas. Ele vai ter que se perguntar um pouco sobre sua vida. Será que é essa mesmo a vida que eu quero? Será que é essa a vida que eu devo levar?”.
Será que Washington sabia exatamente o “risco” que corria quando começou a registrar em reportagens premiadas a realidade das comunidades indígenas pelo Brasil? Foi no Xingu que algo diferente lhe aconteceu. Sua imersão em cinco diferentes aldeias consumiu dois meses de viagem, 70 horas de barco a motor ou canoas, 500 quilômetros a pé. A experiência o marcou profundamente. Num encontro casual com Washington num avião, o antropólogo Darcy Ribeiro percebeu um brilho diferente no olhar do amigo: “Agora você já sabe que não se passa incólume pela experiência de ver o mundo com os olhos dos índios”. E vaticinou: “Você nunca mais vai ser a mesma pessoa”.
A “maldição” de Darcy se confirmou na obstinação renovada desse homem, sempre aguerrido e disposto, em favor de um jornalismo comprometido com um mundo melhor e mais justo.
Devo a Washington Novaes escolhas importantes que fiz na minha carreira. Especialmente a de entender, como jornalista, a real dimensão dos assuntos ambientais na vida moderna e no meu ofício. É sinceramente um privilégio tê-lo como referência, amigo e, como diriam os índios, “o sábio da tribo”.
Por último, aqui vai uma dica importante: não o chamem de “jornalista ambiental”. Por mais de uma vez eu o vi declinar, com elegância, esta apresentação. Washington é simplesmente jornalista, daqueles que sabem “cutucar” com maestria os gigantescos interesses econômicos e políticos que se locupletam no que não seja “sustentável”. É dele a frase que aparece reiteradas vezes em artigos indignados com o descaso dos governos para com os assuntos de meio ambiente: “a questão ambiental deveria ser o centro e o princípio de todas as políticas”. Podemos ainda estar muito longe disso, mas é nessa direção, como já defendia Washington décadas atrás, que devemos caminhar.
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*André Trigueiro é jornalista com Pós-graduação em Gestão Ambiental pela COPPE/UFRJ onde hoje leciona a disciplina Geopolítica Ambiental, professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC/RJ, autor dos livros Mundo Sustentável 2 – Novos Rumos para um Planeta em Crise (Ed.Globo, 2012); Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em transformação (Ed.Globo, 2005) e Espiritismo e Ecologia (Ed.FEB, 2009); Coordenador editorial e um dos autores do livro Meio Ambiente no século XXI (Ed.Sextante, 2003). Durante 16 anos foi âncora e repórter do Jornal das Dez da Globo News. Desde abril de 2012, vem atuando como repórter do Jornal Nacional e colunista do Jornal da Globo, onde apresenta o quadro Sustentável, especialmente criado para ele na Rede Globo. É editor-chefe do programa Cidades e Soluções, da Globo News, comentarista da Rádio CBN e colaborador voluntário da Rádio Rio de Janeiro.
ENTREVISTA – Eu sempre tento esclarecer que não sou ambientalista
Numa tarde de janeiro, nos jardins da TV Cultura em São Paulo, Washington Novaes concedeu a entrevista abaixo às jornalistas Paulina Chamorro e Mônica C. Ribeiro. Partindo de sua atuação como documentarista e jornalista e da experiência como Secretário de Meio Ambiente no Distrito Federal, Novaes aborda questões que o país não pode mais tratar em banho-maria: saneamento, resíduos sólidos, mudanças climáticas, matriz energética, demarcação de terras indígenas.
Mônica C. Ribeiro (MR): Como surgiu o interesse em trabalhar as questões ambientais em documentários e no jornalismo?
Washington Novaes (WN): Eu sempre tento esclarecer que não sou ambientalista. Eu sou jornalista há 57 anos, e se trato muito dessas questões é porque não há como isolar o meio ambiente do restante. O meio ambiente está em tudo que a gente faz, na nossa vida toda. Não pensar nas chamadas questões ambientais significa deixar os problemas crescerem, e esses problemas são cada vez maiores.
Eu fui para a televisão em 1973 – até então só tinha trabalhado em jornais e em revistas – dirigir o jornalismo da TV Rio, e comecei a tratar muito dessas questões. Em seguida fui para a TV Globo ser chefe de redação do Globo Repórter. Lembro que o primeiro programa que eu dirigi pessoalmente foi sobre uma grande inundação em Pernambuco, principalmente em Recife e nas vizinhanças, com mortes, desmoronamentos, essas coisas. E a partir daí tudo foi se acentuando. Fiz vários documentários, um deles foi Amazonas, a Pátria da Água, que era um roteiro do Thiago de Mello, o escritor. Esse trabalho inclusive ganhou um prêmio no Festival de Televisão em Nova York [Medalha de prata no Festival de Cinema e TV de Nova York (1982)]. Depois eu fui trabalhar como produtor independente e na TV Cultura.
MR: As séries sobre o Xingu talvez sejam seus trabalhos mais conhecidos do grande público. Que diferenças o senhor encontrou no Xingu passadas duas décadas entre a primeira e a segunda série?
WN: A primeira série – eu fiz as gravações lá no Xingu em 1985, 1986 –, foi exibida na TV Manchete. A segunda eu fiz em 2006/2007. Há mudanças grandes porque há uma aproximação cada vez maior dos brancos, vamos chamá-los assim, e dos índios. Em 1986 não havia quase comunicação, não havia estradas para chegar ao Xingu, só se chegava por rio ou avião. Em 2006 já havia estradas de todas as aldeias ligando à Canarana e às cidades ali do Mato Grosso. Em 2006, os chefes mais velhos, que eu conhecia desde a primeira vez em que fui ao Xingu, me falaram que eu precisava ajudá-los a acabar com o processo de educação bilíngue, de ensinar português para os índios nas escolas junto com a língua nativa. Diziam: isso vai acabar com a nossa cultura, as crianças aprendem a falar português e depois querem viver como os brancos, querem ter as coisas que o branco tem. Querem ter televisão, gravador, óculos, tênis, querem todas essas coisas. Isso é uma questão muito séria, à qual se presta muito pouca atenção, se é que se presta atenção.
Uma visão que me foi acentuada pelo Pierre Clastres no livro A Sociedade contra o Estado: ele disse que nós sempre tentamos ver o índio não pelo que ele tem, e sim pelo que ele não tem. Um índio não tem roupa, não tem geladeira, não tem televisão, não tem máquina de lavar, não tem gravador, enfim. E enquanto isso nós nos esquecemos das coisas que o índio tem. Um índio, na força da sua cultura, não delega poder a ninguém. Nas sociedades indígenas que mantêm sua cultura, o chefe é o representante e o que mais sabe daquela cultura, da tradição. É o grande mediador de conflitos, mas não dá ordem para ninguém. O índio é autossuficiente, sabe fazer tudo que precisa para viver. Então, são dois luxos enormes: você nascer e morrer sem receber ordem de ninguém, e nascer e morrer sem nunca depender de ninguém. Mas para isso acontecer tem também o terceiro ponto: a informação é aberta. Ninguém se apropria da informação para transformar em poder político e econômico.
Um dia, subindo a escada para um avião em Brasília, o Darcy Ribeiro vinha atrás de mim, nós começamos a conversar e naquela época estava sendo exibida a primeira série sobre o Xingu. E ele então me disse, “eu estou vendo a sua série, estou gostando muito e agora você já sabe de uma coisa: você nunca mais vai ser a mesma pessoa; ninguém passa pela experiência de ver o mundo pelos olhos do índio sem se modificar profundamente.” E isso é verdade, eu sou uma pessoa que se modificou muito.
MR: O senhor foi Secretário de Meio Ambiente no Distrito Federal na década de Como é que essa experiência influencia na sua a sua produção, a sua visão das questões ambientais?
WN: Eu fui durante dois anos Secretário de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia. Foi uma experiência muito rica e muito dolorosa. Rica no sentido de que você aprende muito lidando concretamente com a realidade e os conflitos que ela encerra – toda questão que você vai tratar tem um conflito, tem uma divergência, oposições, dificuldades que você tem que resolver. Tinha também a questão de enfrentar os conflitos dentro do governo. A cada dia eu tinha um choque com um secretário: um dia com o Secretário de Obras, com o Secretário de Transportes, outro dia era com o Secretário de Saneamento e assim por diante.
Na área do lixo, que talvez seja a mais complicada de todas, eu recebi duas ameaças de morte por causa dos programas que comecei a tentar implantar. Até hoje os grandes problemas que existiam na época continuam. Por exemplo, eu queria começar enfrentando o problema do lixão na via estrutural, que é dentro do Plano Piloto – já havia na época mais de mil pessoas morando lá e vivendo no lixo. E eu tentei uma porção de soluções: tirá-las dali, fazer conjunto habitacional, cooperativa de reciclagem, usina de reciclagem. Não consegui fazer nada, hoje o lixão está lá ainda, e há cinco mil pessoas morando nele.
Além das ameaças de morte, um suplente de senador um dia pediu uma audiência e entrou dizendo: “eu vou direto ao assunto, me disseram que o senhor está abrindo uma licitação para a coleta de lixo aqui no Plano Piloto.” Eu disse: “sim, é verdade”. E ele: “Mas isso é um absurdo”. “Por quê?”, eu perguntei. “Porque o lixo no Distrito Federal é meu”, e ele batia no peito. Eu disse: “como assim, é seu?”“Eu trabalhei nas campanhas, contribuí, então o lixo é meu.” E saiu batendo a porta. Em tudo você vai enfrentar beneficiários que vão se opor a essas transformações. Não é por acaso que é tão difícil fazer qualquer coisa.
Paulina Chamorro (PC): Vamos falar sobre grandes temas que pontuaram os primeiros anos do século XXI no Brasil, começando com a reformulação do Código Florestal. Depois de dois anos de discussões e idas e vindas das propostas no Congresso, qual é a opinião do senhor sobre esse processo?
WN: Ainda na década de 1980 havia incentivos fiscais para desmatamento na Amazônia – as pessoas deixavam de pagar imposto e com esse dinheiro faziam o desmatamento. Grandes bancos, grandes empresas fizeram projetos enormes de desmatamento e de pecuária na Amazônia. Depois se evoluiu, os incentivos acabaram, graças principalmente ao José Lutzenberger [Secretário Especial de Meio Ambiente do Brasil entre 1990 e 1992], que foi demitido do governo inclusive por causa da oposição ao desmatamento e aos grandes projetos na Amazônia. A legislação evoluiu, foi criando restrições, e de repente voltou a recuar, porque há uma pressão muito grande da agricultura e da pecuária no sentido de não haver limitações para as suas atividades.
Vou dar um exemplo concreto. Você tem um avanço enorme da produção de grãos e da pecuária no Cerrado brasileiro, e o desmatamento vem avançando enormemente. Hoje mais de 50% da área de vegetação natural do Cerrado já foi removida por causa desses projetos. Há uns oito anos eu entrevistei o Bráulio Dias, que era Diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, professor universitário, e hoje é secretário geral do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. E o Bráulio naquela época começou a manifestar preocupação com a água no Cerrado. Eles tinham feito uma estimativa e uma análise que mostravam que o Cerrado tinha no subsolo água para o fluxo de sete anos. No Cerrado nascem 14% das águas brasileiras, que vão para a Bacia do São Francisco, Bacia Amazônica e Bacia do Paraná. Uns quatro anos depois voltei a entrevistar o Bráulio sobre isso. O estoque de água já tinha baixado para três anos, porque com a remoção da vegetação há um processo de compactação do solo, e a água não se infiltra. Hoje a reposição de água no subsolo do Cerrado é menor do que a quantidade de água utilizada. O combate ao Código Florestal e às regras é uma coisa que se voltará contra os próprios produtores, porque eles dependem desse ambiente.
PC: Outro grande ponto para o desenvolvimento econômico e ambiental do Brasil é a matriz energética. Afinal, o país tem ideia do que está fazendo em relação à energia?
WN: Acho que não. Falta, principalmente, uma visão que coloque isso como ponto decisivo das políticas brasileiras. O Brasil é um país muito privilegiado, de território continental, com sol o ano todo para plantar, para colher. Temos aí uns 13% de toda água superficial do planeta, fora os aquíferos subterrâneos. Nós temos a possibilidade de uma matriz energética extremamente limpa e renovável, única no mundo. Mas em 2013 tivemos leilões de energia onde foi proibida a participação da energia eólica. Por quê? Porque ela já tem preço capaz de competir com as fontes tradicionais, inclusive com a hidroelétrica, e isso atinge interesses de muitos setores. No nordeste já temos mais de 80 instalações eólicas prontas, mas não há linhas para conectá-las à rede geral, e isso é uma obrigação do governo pelos contratos que assinou com as empresas, com o agravante de que o governo tem que pagar pela energia que não é usada. Também não é possível continuar com esse sistema de linhas de transmissão de dois mil, três mil, quatro mil quilômetros. Há estudos que dizem que nós estamos perdendo 17% da energia que passa por estas linhas de transmissão. Os setores governamentais dizem que é muito menos, em torno de 7%. Mas mesmo que fosse 7%, é muita coisa.
PC: Dois projetos de lei aprovados no Brasil são de suma importância para a sustentabilidade das cidades: a política nacional de resíduos sólidos e a política de saneamento. Grande parte dos municípios brasileiros não apresentou nem propostas para a União para a implantação destas duas leis. Qual futuro o senhor enxerga diante deste cenário?
WN: Quase 50% do lixo no Brasil vai para lixões. Foi feita a Lei Nacional da Política de Resíduos Sólidos e os municípios tinham até agosto de 2013 para apresentar projetos e se candidatar a recursos federais. Menos de 10% dos municípios apresentaram planos. Todos os municípios estão obrigados pela lei a apresentar projetos para coleta seletiva e reciclagem. Hoje você tem menos de 1% do lixo do Brasil indo para usinas de reciclagem oficiais. É uma coisa calamitosa, ainda mais que a tendência é uma pressão muito forte para que o país caminhe para a incineração de lixo para produzir energia, e este é o pior dos caminhos. Primeiro, porque é um desperdício, você está queimando recursos que poderia reutilizar, reaproveitar, reciclar. Segundo, é um processo muito caro, porque se você não separar o lixo orgânico do seco, terá que usar temperaturas de mais de 900ºC, e isso custa caríssimo para não emitir dioxinas e furanos, que são cancerígenos. E quem é que separa lixo no Brasil? Quase ninguém. Grandes empreiteiras que têm influência decisiva em todas as políticas brasileiras já montaram empresas de incineração de lixo e estão pressionando para que o lixo seja incinerado.
Na área de saneamento, 40% da população brasileira não tem suas casas ligadas a redes de esgoto. Isso significa que estes esgotos não são sequer coletados e vão direto poluir os rios brasileiros. Mesmo na parte que é coletada, só 18%, eu creio, recebe alguma forma de tratamento. Sem falar que nós continuamos com uma perda média de 40% da água que sai das estações de tratamento e se perde no caminho antes de chegar aos consumidores. Há alguns anos fui a uma cidade do interior de São Paulo, onde eu nasci [Vargem Grande do Sul], e o Prefeito veio conversar comigo para ver se eu não podia ajudá-lo a conseguir financiamento para um novo reservatório de água, uma adutora e uma estação de tratamento. Aí eu disse: “mas essa rede de água é muito antiga, da minha infância, e deve estar com muitos furos e vazamentos, como acontece em quase todo o Brasil. Você tem algum controle disso?”’ Ele respondeu: “Nós temos tudo contabilizado, estamos perdendo 60% da água que sai da estação de tratamento”. “Mas perdendo 60% da água já tratada, porque vocês não fazem um projeto para recuperação da rede?” Ele retrucou: “Porque não há financiamento oficial para isso”. Bom, uns dois anos depois eu voltei e ele me procurou e disse que tinha conseguido um financiamento do Ministério das Cidades. E eu soube agora que em Recife houve um primeiro projeto financiado por um banco para cuidar da recuperação das redes. Mas é uma situação calamitosa.
PC: No livro Além da Conquista, de Scott Wallace – produzido a partir de uma expedição ao Vale do Javari junto com a comitiva de Sidney Possuelo [presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) na década de 1990 e chefe do setor de tribos isoladas até 2006] –, Possuelo sentencia: “Nossas autoridades têm vergonha de que uma extensão tão grande de nossas florestas esteja nas mãos de gente pelada e com arco e flecha”. Para onde o senhor acha que vai caminhar a questão indígena no Brasil? E finalmente, como é que o Brasil vai se enquadrar no futuro das mudanças climáticas?
WN: Essa questão de que índios são 1% da população e têm 11% do território me faz sempre lembrar do Lévi-Strauss, que chegou a viver entre os índios brasileiros, e que faz uma pergunta muito interessante: “Por que os índios brasileiros – eles eram alguns milhões quando os portugueses chegaram aqui – não massacraram todos os portugueses e continuaram vivendo a vida deles? Pelo contrário, eles receberam os portugueses como fidalgos, fizeram tudo para ajudá-los, e foram massacrados. Por quê?” O Lévi-Strauss diz o seguinte: na visão de mundo, na cosmogonia do índio, a chegada do outro está sempre prevista. E o outro é o limite da sua liberdade. Porque você tem que conviver, a sua liberdade com a liberdade dele, e o índio tentou fazer isso sempre. O índio aponta para as utopias humanas – um ser autônomo que não recebe ordens, um ser que não depende ninguém, um ser que não está condicionado. Mas a nossa sociedade não quer ver o índio assim exatamente porque quer as terras dele. Você tem uma visão que é permeada por interesses econômicos quando, ao contrário, nós deveríamos olhar cada vez mais para o índio e aprender com ele, porque o mundo vai ter que mudar.
E respondendo à parte final, o Brasil já enfrenta muitas dificuldades na área de mudanças do clima por causa do desmatamento, das emissões de poluentes e de outros fatores. O que os estudos científicos estão nos dizendo é que se o mundo prosseguir no caminho que vai hoje, nós teremos um aumento de pelo menos três graus e meio na temperatura da Terra. Não se consegue chegar a um acordo no âmbito da Convenção do Clima para garantir a redução de emissões e conter a temperatura. Para conter em dois graus seria preciso reduzir em 80% o consumo de combustíveis fósseis. E a gente sempre esbarra em uma mesma questão, que são as lógicas financeiras se sobrepondo às chamadas lógicas ambientais.
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*Mônica Ribeiro é Jornalista e mestre em Antropologia. Coordenou a Comunicação da Secretaria do Verde da Prefeitura de São Paulo – quando criou as campanhas ‘Eu Não Sou de Plástico’ e, em parceria com a SVB, a ‘Segunda Sem Carne’. Colaborou com a revista Página 22, da FGV-SP, e com a Unisol Brasil. Hoje é conectora – trabalha linkando projetos e pessoas de todas as áreas na comunicação para um mundo melhor. No blog Economia em Sol Maior, ela fala sobre economia solidária.
*Paulina Chamorro – Chilena de nascimento e morando no Brasil há mais de 17 anos, Paulina Chamorro ingressou na rádio Eldorado de São Paulo em 1998 e logo depois já começou a trabalhar com pautas e reportagens de meio ambiente. Paralelamente a rádio, ela foi assessora de comunicação do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica; editora do portal Ecoinforme, além de repórter e roteirista do Projeto Mar Sem Fim, da TV Cultura.