Texto sobre os filmes da temática Ativismo do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Mariana Belmont*
Em tempos terríveis para se viver e sobreviver, resistir é urgente e necessário. Como diz o grande xamã Yanomami Davi Kopenawa, “temos que sacudir, tem que falar, tem que balançar, tem que cutucar, se não eles não vão fazer nada”. Em casa, as pessoas nunca souberam bem o que eu faço, como sobrevivo e qual a minha força para a coragem. Assim, é impossível não se inspirar com Dolores e admirá-la. Peguei um caderno para anotar, enquanto assistia, cada coragem, cada força, mas foi impossível.
Entre oceanos tristes, vulcões, patrimônios e tudo, é Dolores que me vinha à cabeça. Talvez porque tenha sido o primeiro filme a que assisti. Mas também porque Dolores dá forma e valor a dores tão latentes, e se coloca à disposição para ser a voz em busca dos direitos das pessoas historicamente esquecidas por quem nos colonizou.
Olhando para ela, vejo muitos tipos de ativismos, e acredito que todos sejam de extrema importância para combater injustiças, barrar retrocessos, minimizar as emergências climáticas e tantas outras questões. O mundo está cheio de lideranças ativistas e precisamos de mais, porque nosso atual modelo de sociedade foi concebido para nos sufocar e nos matar.
Mas fico pensando se podemos chamar Dolores Huerta de ativista. A palavra daria conta de definir a imensidão de importância que ela teve para milhares de trabalhadores nos EUA? Eu acho que não. O dom da palavra, a força e a organização no movimento a tornam ainda mais potente, firme, combativa e disposta a abrir mão da convivência familiar para estar inteiramente na luta.
Os cinco filmes nos forçam a olhar para o que acontece no planeta, acompanhando cada mobilização e trabalho dos ativistas, que recupera vidas perdidas, devolve a dignidade a pessoas e salva o oceano, que nos conecta enquanto humanidade.
Vulcão de Lama: A Luta Contra a Injustiça nos apresenta Dian, jovem ativista, mas que, ainda criança, sobreviveu ao tsunami de lama que soterrou 16 vilarejos em uma área industrial e residencial de Java Oriental, na Indonésia, desalojando mais de 60 mil pessoas. É impossível não lembrar das imagens do crime da Vale em Mariana e depois em Brumadinho, em Minas Gerais, em 2015 e 2019, respectivamente. Grandes empresas arriscam a vida de milhares de pessoas pelo lucro. No caso da região de Java Oriental, cientistas afirmaram que a tragédia se deveu às atividades de fracking – extração de gás de xisto –, que acidentalmente atingiu um vulcão de lama subterrâneo. A luta por justiça segue e a imagem de terra arrasada, tudo desaparecido, coberto de lama, das histórias interrompidas dá força para escrever mais linhas de sobrevivência.
Triste Oceano, de Karina Holden, alerta para a realidade da vida marinha do mundo, que estamos perdendo em decorrência do uso desastroso dos mares e da exploração desenfreada da pesca. A verdadeira carnificina de milhares de espécies é pano de fundo para evidenciar a pobreza das pessoas que sobrevivem desse mercado nas áreas costeiras. Nas imagens, assistimos assustados ao uso descontrolado do plástico e ao retorno de nossos resíduos à natureza. A imagem de uma das pesquisadoras retirando um pedaço de plástico da garganta de um filhote de pássaro marinho é tão impactante quanto os dados apresentados: metade de toda a vida marinha foi perdida nos últimos 40 anos, e, até 2050, haverá mais plástico que peixes nos mares.
Os oceanos são a imensidão que nos conecta com o mundo. Já conseguiu entrar no mar, fechar os olhos e só ouvir a onda quebrar na areia? Abra os olhos e veja onde ele termina, é água que não acaba mais, é infinito de vida. Tenho a impressão de que o mar é infinito, que se conecta com outros mundos possíveis, outros povos, outras tradições, temperaturas, biomas, tudo com muita ancestralidade. É santuário de salvação.
É o mar que nos leva à Patrimônio, filme em que a resistência e a luta estão intimamente ligada à imensidão da natureza, preservada por famílias de pescadores há décadas. O documentário coloca em cena o racismo ambiental, que faz desaparecer comunidades históricas: logo no início, executivos brancos celebram a construção de um grande empreendimento hoteleiro, americano, de bilhões de dólares, que está sendo planejado para invadir uma pequena comunidade costeira do México. Não é surpreendente – há décadas acompanhamos com indignação poderosos construindo e acabando, legal ou ilegalmente, com zonas costeiras e expulsando comunidades inteiras. A história se repete.
O acesso à água para sobrevivência local continua ameaçado, e a vida marinha e manguezais, destruídos. Mas a população local está se organizando para resguardar seu modo de vida e o delicado ecossistema do qual todos dependem. E quais são os direitos das comunidades diante dos interesses milionários e do desenvolvimento insustentável? O que elas podem fazer para defender esses direitos e seu modo de vida? Unir-se, para salvar tanto esse modo de vida quanto um ecossistema já ameaçado, do qual todos ali dependem.
Até aqui, aprendemos que ninguém pode se dizer um ser consciente e não denunciar as injustiças colocadas diante de si. Todos temos a responsabilidade e o dever de proteger a natureza, a cultura e as pessoas que vivem de forma sustentável e garantem a sobrevivência do planeta. É responsabilidade! É desconfortável assistir Patrimônio e não poder gritar junto com a comunidade de pescadores e suas famílias. Testemunhamos a mobilização e a conscientização da cidade através dos olhos de Rosario Salvatierra, cuja família pescou nessas duras águas por quatro gerações, e de John Moreno, jovem advogado nascido em Todos Santos, surfista e ativista ambiental que assume uma causa que altera totalmente sua vida, mas que ganha um desfecho positivo para a história da comunidade.
Assim como em diversos lugares do mundo, o modelo de desenvolvimento vigente está destruindo comunidades e modos tradicionais de viver. A permissão para a execução de projetos como esse é concedida com rapidez e sigilo em nível nacional, e os danos ambientais que os empresários já causaram seguem impunes. No Brasil, tivemos a má sorte de instituir Ricardo Salles como ministro do Meio Ambiente – “defensor” das florestas, biomas e povos e comunidades da floresta. Não por acaso, o “estouro da boiada” no desmatamento da Amazônia coincidiu com o período eleitoral de 2018 – que deveria entrar para a história como a maior desgraça pela qual o país já teve de passar.
O aperto de mãos entre presidentes poderosos que inaugura as cenas de Sufocado nos coloca diante da indústria corrupta do amianto e de seu desprezo pelos direitos humanos. A pesquisa do cineasta Daniel Lambo leva ao maior depósito de resíduos de amianto da Índia, e revela uma indústria de sangue frio que ainda põe em risco a vida de trabalhadores e consumidores em todo o mundo.
O amianto é um agente cancerígeno muito conhecido e não existe um nível seguro de exposição a ele. Ao longo do século XIX, esse mineral foi amplamente utilizado nas construções civil e naval e na indústria do automóvel, uma combinação de maldade e degradação ambiental. Sem proibição, o amianto permanece legal e letal em quase 70% dos países do mundo, incluindo os Estados Unidos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 125 milhões de pessoas ao redor do mundo convivem com amianto no trabalho.
A desgraça é a céu aberto: pessoas que mal conseguem respirar têm seus direitos e vozes silenciadas de forma perversa, já que, por outro lado, não podem perder seus empregos. Mesmo com empregos absurdamente violentos e desumanos. O caminho para a organização em sindicatos, busca por direitos, pressão para que exista segurança é fundamental. O ativismo está em todos os lugares? Talvez de formas diferentes, e em movimentos distintos, muitas vezes não chamados de ativismo.
Por isso, precisamos de advogados, deputados, vereadores, jornalistas, professores ativistas. Ativistas de todas as áreas, ocupando os espaços para a busca por direitos, combatendo a desigualdade social e a degradação ambiental feroz no mundo.
Caminho
Conviver com unidades de conservação e falar sobre elas é parte fundamental da minha vida desde que tinha 14 anos, quando vi de perto a criação da Área de Proteção Capivari-Monos e, depois, ajudei a criar e a pensar a Área de Proteção Ambiental Bororé-Colônia, ambas dentro da maior e mais significativa parte da Mata Atlântica da cidade de São Paulo, parte essa que é de uma riqueza biológica muito importante e necessária a esse bioma.
Ou seja, nasci em uma região que quase todo mundo desconhece, porque, no imaginário das pessoas, a cidade de São Paulo é integralmente cinza, com prédios. Minha participação nos espaços de discussão sobre unidades de conservação, sua importância e as maneiras de lidar com conflitos em um território limite da área urbana, mas muito rural, se misturam. No lugar em que a floresta se mistura com a cidade, e a cidade com a floresta. Conviver com contradições, como precisar valorizar a água, a mata e toda a biodiversidade, que nos fazem respirar, mas vivenciar a falta de serviços básicos, que não chega por ali, é bem complexo e urgente. Precisamos achar meios para que tudo possa conviver em harmonia, ou pelo menos tentar caminhos comuns. E eu encontrei o ativismo.
Ainda sobre os filmes
Os cinco filmes, mesmo que com particularidades regionais, caminham por lugares que se encontram. São filmes que se atravessam, uns resistindo com dor, perda e sufoco por justiça e existência, outros travando batalhas pela sobrevivência de um mundo ameaçado, e usando seus privilégios para denunciar injustiças.
Viver pelo coletivo desconhecido é iniciar um caminho de aprendizado que, em muitos casos, não tem mais volta. Ser, viver e se tornar movimento social é isso, um emaranhado de nós junto às nossas vidas cotidianas. O que faz o ser humano esgotar a terra até o último estágio? Mesmo que isso cause milhares de mortes e ainda mais problemas ambientais e sociais no mundo? As respostas podem ser diferentes, mas certamente passam por poder e dinheiro.
Quando ativistas e militantes se dispõem a trabalhar e lutar para que a biodiversidade permaneça intacta, para que vidas e tradições não morram de fome ou esquecimento, entregam também um pedaço da própria vida – sua força e existência – para o mundo. Vidas atravessadas por outras vidas, que também precisam existir.
Talvez por isso, dentre todos os filmes, Dolores tenha me virado mais a cabeça. O que chama a atenção é a entrega com que diversas mulheres se doaram pelo mundo e para seu povo, no combate ao machismo, racismo e desigualdade social, todos planejados por grandes lideranças mundiais que não estão comprometidas com a justiça ambiental e social do mundo. Dolores é o símbolo que tentaram apagar, é o símbolo de um povo latino-americano que segue sendo exterminado. Símbolo da luta pela terra e pela preservação ambiental que resiste contra a destruição de territórios de diferentes povos ao redor do mundo.
Na luta para sermos melhores e menos predadores, há a resistência de quem diariamente se doa ao mundo para que o planeta resista por mais alguns longos anos. A utopia ainda persiste para que se viva, e é capaz de movimentar o mundo, por mais que muitos não acreditem nisso. Enquanto escrevo esse texto, em um convite muito especial da Mostra Ecofalante, um vírus vem matando milhares pessoas pelo mundo, e nos faz, por um instante, parar de acreditar no futuro possível e planejado. A Covid-19, que nos mata e nos impossibilita de sair de casa, é resultado da forma despreparada e predadora com que usamos os recursos do planeta. E mesmo em um cenário de colapso mundial, as grandes corporações seguem o plano genocida de eliminar florestas, poluir oceanos, matar comunidades inteiras e acabar com a nossa água.
A possibilidade de criar nossos mundos desejados, vencer o ódio e combater a desigualdade repousa, acredito eu, em seguir com nosso trabalho diário no chão dos milhares de territórios. Seguir os ensinamentos de quem persiste pelo mundo, de quem veio antes e nos ensinou a cuidar e preservar para existir. O que há poucos anos chamamos de ativismo muda o mundo, transforma. Até que um dia todos os seres vivos aprendam a viver juntos.
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*Nascida em Colônia, extremo sul da cidade de São Paulo, MARIANA BELMONT se define como uma esticadora de pontes. Atuando com mobilização e comunicação para políticas públicas, faz parte da Rede Jornalistas das Periferias, constrói o Ocupa Política e colabora com a Uneafro Brasil.