16 de maio de 2019

O Porco e o Cientista: Da Dessacralização da Natureza ao Ambientalismo Tecnocrata – por Mauricio Torres e Thaís Borges

Texto sobre os filmes da temática Sociobiodiversidade do Panorama Internacional Contemporâneo

por Mauricio Torres e Thaís Borges*

 

O espectro de um fim, representado pelo fogo que queima e destrói. A cena inicial do documentário Antropoceno: A Era Humana anuncia a tese que se segue: o homem transformou-se numa força geológica, e os impactos gerados no planeta por ele tornaram-se irreversíveis.

Um mosaico de imagens de grande escala revela a velocidade com que a apropriação dos recursos naturais se dá: a mineração de potássio na Rússia, a extração de lítio no Deserto do Atacama, no Chile, a maior plataforma de escavação do mundo na Alemanha, as montanhas de lixo no Quênia, a retirada do mármore em Carrara, na Itália. Se duas décadas atrás um trabalhador levava vinte dias para extrair um bloco de mármore, hoje a retirada ocorre em menos de 24 horas. Sobre imagens urgentes e chocantes, nos chega pela narradora a informação de que 85% das florestas já foram derrubadas ou degradadas pelo uso humano.

O aquecimento global, o desmatamento, a sexta grande extinção das espécies, a acidificação dos oceanos, as migrações de populações, a poluição do ar e o envenenamento toxicológico generalizado de seres vivos e biomas parecem comprovar o fato de que a interferência humana tem alterado os fluxos naturais do planeta. No entanto, em meio a cientistas de diversas áreas, há quem conteste a noção de Antropoceno. Afinal, quem responde por tão grande interferência? Pensadores como o historiador ambiental norte-americano Jason Moore e o historiador francês Christophe Bonneuil criticam o conceito e direcionam o problema não ao “humano”, mas a uma específica classe de humanos, em um específico sistema econômico. Fala-se, então, em Capitaloceno e Ocidentaloceno.

“Quando Cordeiros se Tornam Leões”, de Jon Kasbe

Com efeito, se pensarmos que, segundo a Oxfam, em 2017, a fortuna dos oito homens mais ricos do mundo somava um valor maior do que possuía toda a metade mais pobre da população mundial, não parece razoável socializar esse impacto da extração de riqueza com os tuaregues, pastores nômades do leste nigeriano, ou com os Zo’é, índios da calha norte da Amazônia brasileira.

Por meio do documentário A Luta de Silas, deparamo-nos com esse debate. O filme mostra o apoio do ativista liberiano Silas Siakor a comunidades expropriadas por grandes empresas madeireiras e produtoras de óleo de palma, detentoras de concessões florestais e terras na Libéria. A natureza, que sempre garantiu a sobrevivência desses povos, torna-se alvo de exploração em escala industrial. Paradoxalmente, o avanço sobre as florestas ancestralmente ocupadas é legitimado por uma axiomática noção de “desenvolvimento”. Sob o discurso de erradicação da pobreza, os governos sacrificam os interesses vitais das parcelas mais carentes da população. Como estratégia de resistência, Silas implementou um projeto que permite aos comunitários usar um aplicativo de celular para denunciar as violações de direitos. Por essa via, comunidades tradicionais rompem com uma invisibilidade política ao integrarem a divulgação de fotos, vídeos e coordenadas geográficas à sua luta por reconhecimento. E, dessa forma, alçam a outras esferas as denúncias do processo de apropriação privada das terras e recursos de uso comum.

Na situação retratada em A Luta de Silas, assim como na Amazônia brasileira, os contínuos florestais, grandes ou pequenos, comumente são os nichos de resistência de povos ou comunidades tradicionais. Contraditoriamente, um discurso ambientalista que aliena a floresta de seus povos – como também se furta de um olhar político sobre a questão – criminaliza esses grupos pelo uso que fazem de seus territórios – áreas cuja integridade se deve, exatamente, ao manejo secular ou milenar que ali se pratica e à resistência de seus ocupantes contra o avanço da fronteira.

Situações desse tipo colapsam quando a porção de floresta restante é insuficiente para assegurar o modo de vida desses grupos. A comum estrutura de concentração fundiária impele povos e comunidades tradicionais a relações de dependência, em um enredo, aliás, pelo qual se formam máfias ao redor do mundo. Quando Cordeiros se Tornam Leões levanta essa discussão ao mostrar a caça aos elefantes do Quênia para o abastecimento do comércio ilegal de marfim. O documentário recorre a personagens de campos antagônicos para revelar o conflito: de um lado, um guarda florestal armado com fuzil e autorizado a atirar para matar; de outro, um negociante de presas de marfim, acompanhado de um caçador que usa flechas envenenadas para abater os animais. Uma das cenas iniciais de Antropoceno: A Era Humana se repete aqui. Nela, pilhas de marfins, oriundos de mais de 10 mil elefantes, são queimadas num espetáculo transmitido ao vivo pela TV. “O marfim é inútil, a menos que esteja em nossos elefantes” é a frase de impacto escolhida pelo presidente queniano Uhuru Kenyatta para dar publicidade ao ato, enquanto mais de 150 milhões de dólares em marfim transformam-se em fumaça. O discurso ambiental do Estado aparece dissociado da realidade da população. E o antagonismo entre guarda e contraventor acaba por se revelar cosmético, na medida em que as personagens transitam pelos diferentes polos do conflito engendrado pelas relações de dependência

As valiosas presas, muito usadas por escultores e conhecidas também como “ouro branco” funcionam como uma espécie de leitmotiv de três filmes que compõem o eixo temático SociobiodiversidadeAntropoceno: A Era Humana, Quando Cordeiros se Tornam Leões e Genesis 2.0. Nesse último, as presas do extinto mamute são apresentadas como a alternativa ao comércio ilegal. A opção, apesar de não promover a matança de animais, também gera seu ônus socioeconômico: os caçadores que arriscam a vida para encontrar os restos dos mamutes não compartilham dos lucros auferidos nesse mercado. Nas ilhas geladas do norte da Sibéria, passam o dia cavando o solo em busca de materiais de qualidade. Enfrentam a falta de comida, a distância da família, as tempestades marítimas. Uma narrativa paralela, pautada por outra chave ontológica, desenvolve um enredo sobre avanços tecnológicos. Os arcos narrativos convergem no ponto em que são apresentados dois irmãos: Peter e Semyon Grigoriev: o primeiro procura presas de mamute, o outro é cientista e dirige um museu dedicado ao mamífero extinto. As concepções de profanação das escavações, que atormentam os caçadores, confrontam-se, então, com a perspectiva de clonar um mamute morto há 30 mil anos. Os irmãos figuram como significantes de formas distintas e antagônicas de conceber o mundo e a si próprios. O filme, que leva no título o nome do primeiro livro da Bíblia, o livro da “Criação”, nos convida, ainda, a pensar a fé depositada na ciência e na tecnologia como fonte inquestionável de prosperidade. Como uma nova religião universal, remete-nos à imagem do cientista-Deus por meio da tecnologia, em oposição ao homem que integra o mundo a partir de uma perspectiva horizontal, não hierarquizada.

“Antropoceno: a Época Humana”, de Edward Burtynsky, Jennifer Baichwal e Nick de Pencier

A ideia de dominação da natureza está impregnada dessa relação de poder por meio do conhecimento científico. Um poder que afasta o homem ocidental da natureza e faz com que ele creia estar no topo de uma cadeia hierárquica, sobre os seres todos. É essa posição que autoriza o polêmico uso de animais como cobaias, um dos temas tratados por A História do Porco (em Nós). Aos que se opõem à ideia, lança-se mais uma vez a condenação, típica do tecnocentrismo, de que estão contra o progresso, contra a ciência. A premissa que autoriza essa prática científica em que se pode matar outra forma de vida não é, ela mesma, científica, como afirma o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves. Perde-se o paralelismo entre esses mundos, presente entre muitos povos indígenas e comunidades tradicionais. A cena que mostra uma indígena amamentando um javali, por exemplo, é reveladora da cisão aberta no mundo ocidental. Os animais e a natureza deixaram de ser o “outro” do homem para se transformarem em algo subalterno, passível de domínio e controle. Ao falar do porco a partir de mitos, rituais, simbologia e do significado histórico desse animal, o filme coloca em xeque a condição humana contemporânea. Questiona, também, o mundo capitalista, que, desde seus primórdios, coproduziu a transformação de uma natureza mãe, que dá vida e alimento, em uma matéria inerte, sem vida e manipulável. Em uma interessante passagem de A História do Porco (em Nós), descobrimos que, na China antiga, o mesmo ideograma era usado para referir-se ao porco e à casa. Esse percurso nos leva ao encontro da ecofeminista Carolyn Merchant, que explica de que forma a terra maternal atuou como barreira cultural para os novos modelos de exploração da natureza: “não é tão fácil assassinar a própria mãe, perfurar suas entranhas ou mutilar o seu corpo”

A dualidade homem/natureza comparece também nas belíssimas imagens guardadas por mais de 50 anos nos arquivos da National Geographic e cuidadosamente revitalizadas para dar origem ao documentário Jane, que mostra o primeiro estudo dos chimpanzés em seu ambiente natural, feito pela primatologista Jane Goodall em 1960. No Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia, Jane se aproxima lentamente dos chimpanzés até ser aceita por eles, e nos confronta com o fato de que, sim, também somos natureza. Aos 26 anos, sem diploma universitário, experiência científica ou treinamento de campo, ela foi a primeira a relatar o uso de ferramentas pelos chimpanzés, até então uma linha limítrofe a distinguir o homem. Sua pesquisa desafiou o consenso dominado por cientistas (homens) da época. Hoje, aos 83 anos, Jane Goodall é tida como a maior especialista em primatologia no mundo e conta que foi enviada a Gombe “com a esperança de que uma melhor compreensão do comportamento dos chimpanzés pudesse fornecer uma janela sobre o passado humano”. Entretanto, a proximidade com os chimpanzés não lhe diz apenas de um passado ancestral, mas dialoga com sua concepção de mundo, e lhe proporciona até mesmo lições sobre maternidade, a partir da observação de uma macaca que batizou com o nome Flo.

Memórias pessoais e políticas e a necessidade de equacionar diferentes modos de vida, presentes em todos os documentários do eixo Sociobiodiversidade, retratam a dialética das relações entre a terra e as pessoas, entre o passado e o futuro, de forma a romper com a ideia de uma linearidade “evolucionista”. Esse conjunto de filmes nos convida a uma reflexão: no colapso ambiental que se anuncia, possibilidades de vida e de felicidade que parecem superadas para o senso comum seriam capazes de gestar o futuro?

*MAURICIO TORRES é doutor em Geografia Humana pela USP, com pesquisas sobre conflitos territoriais na Amazônia, e professor do Instituto de Agriculturas Familiares (Ineaf), da Universidade Federal do Pará (UFPA). É autor e editor de Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163, Ocekadi: hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistência na bacia do Tapajós, com Daniela Alarcon e Brent Milikan, e “Dono é quem desmata”: articulações entre desmatamento e grilagem no oeste paraense, com Juan Doblas e Daniela Alarcon, entre outras publicações sobre o tema.

THAÍS BORGES é jornalista e documentarista. Graduou-se pela Universidade de Brasília e realizou estudos complementares na Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba. Atualmente, trabalha como repórter free-lancer e produtora audiovisual independente, com foco em temas socioambientais.