16 de maio de 2019

O Lado (Não) Oculto da Corrida por Recursos Naturais – por Eduardo Viola e Ana Fraga

Texto sobre os filmes da temática Recursos Naturais do Panorama Internacional Contemporâneo

por Eduardo Viola e Ana Fraga*

 

Os filmes participantes da 8ª Mostra Ecofalante na temática de Recursos Naturais representam situações vividas em cinco países: Estados Unidos, Canadá, Indonésia, Congo e Afeganistão. A diversidade não é apenas geográfica, mas também de diferentes níveis de desenvolvimento, de Estado de Direito, de organização da sociedade civil e da intensidade dos conflitos.

Propomos um enfoque na complexidade dos contextos abordados, em oposição a um enfoque reducionista. Entendemos que a compreensão dos vários aspectos envolvidos em cada caso pode contribuir não apenas para a riqueza do debate, mas também para ações mais consequentes da comunidade global envolvida com a causa do uso racional dos recursos ambientais.

Em As Cinzas do Carvão (Estados Unidos) e Éden Sombrio (Canadá), a temática da extração dos combustíveis fósseis está ambientada em países desenvolvidos, com avançada história de consolidação do Estado de Direito. Os conteúdos desses dois filmes trazem as consequências diretas e intensas do aquecimento global, além do seu impacto local.

A queima de carvão é de longe a fonte mais intensa de poluição e de emissão de gases estufa. As Cinzas do Carvão aborda essa questão de forma bastante ampla e completa. Mostra, num primeiro momento, a história da indústria do carvão, tradicional e centenária, cuja energia vai impulsionar o desenvolvimento do capitalismo americano. Entre outros estados históricos na extração do carvão, como Pensilvânia, Ohio e Kentucky, foi a Virgínia Ocidental a região escolhida para mostrar os principais conflitos. Nas suas origens, os mineiros de carvão construíram um dos sindicalismos mais combativos da história dos Estados Unidos. Tinham alta solidariedade de classe por residirem próximos às minas e pela atividade de risco cotidiana, que resultava em muitas mortes. Hoje, estão lado a lado com os empresários do carvão. A partir de 2009, o desenvolvimento do fracking (nova tecnologia para extração do gás de xisto) determinou uma ampla substituição do carvão pelo gás natural para alimentar as termoelétricas americanas. Isso, além de diminuir a poluição do ar local (embora o fracking seja responsável por contaminação do lençol freático), tem sido fator decisivo para a redução da emissão de gases estufa dos EUA nos últimos 10 anos. Com essa substituição, houve um grande fechamento de minas nessa região da Appalachia, com altas taxas de desemprego e descontentamento social. Esses trabalhadores do carvão, historicamente democratas, votaram em massa em Trump, que, em 2016, lhes prometeu o renascimento do setor.

Importante frisar que, desde a reforma do Clean Air Act, em 1990, com padrões mais rigorosos de emissão de partículas, houve um deslocamento parcial da produção de carvão para Wyoming e Montana, estados de baixíssima densidade demográfica. O filme mostra que, atualmente, na Virgínia Ocidental, a grande maioria apoia a extração do carvão, enquanto em Montana e Wyoming as bases de apoio estão divididas entre os que querem sua continuidade para a manutenção de empregos e os que se opõem a isso. Entre esses últimos vê-se inclusive uma aliança contra intuitiva entre dois atores tradicionalmente em conflito, os fazendeiros e os native american. Com a queda do consumo interno de carvão, a indústria, principalmente do Oeste, tem tentado gerar um fluxo de exportação a partir dos portos do Pacífico. O transporte ferroviário do carvão até os portos, sem coberturas dos vagões (para evitar combustão), no entanto, tem gerado forte oposição nos estados de Óregon, Washington e Califórnia; dos sete corredores ferroviários propostos, seis já foram abandonados.

“Éden Sombrio”, de Jasmin Herold e Michael David Beamish

Em outra parte, mostra-se a poluição do ar na região metropolitana de Dallas, no Texas, com o agravamento das doenças respiratórias derivadas da poluição das termoelétricas. A má qualidade do ar de Dallas gera o encurtamento da vida humana, como acontece em São Paulo, apesar de a renda per capita ser seis vezes maior naquela. Vê-se que a qualidade do ar é um problema global mesmo em países desenvolvidos como os EUA. O filme termina mostrando o desenvolvimento da indústria solar e eólica em várias regiões, inclusive na Virgínia Ocidental, Montana e Wyoming, com consequente maior oferta de emprego que o carvão. O desemprego nas áreas carboníferas não tem sido impulsionado apenas pela redução do consumo interno do carvão, mas também pela automação de sua extração. Fica clara a inviabilidade da política de Trump de apoiar a indústria do carvão, pois esta segue cada vez menos intensiva em mão-de-obra, não atendendo, portanto, ao clamor pela manutenção dos postos de trabalho.

Éden Sombrio mostra uma realidade extrema na exploração do petróleo não convencional, extraído das areias betuminosas no norte da província de Alberta. O nível de poluição gerado é maior do que o de qualquer outra extração de petróleo no mundo, devido à alta quantidade de componentes químicos e água necessários. A província de Alberta é a Arábia Saudita do Canadá e tem-se tornado riquíssima pela exploração de petróleo convencional e não convencional. A cidade de Calgary (capital econômica de Alberta) tem uma das maiores rendas per capita do mundo. Essa grande ascensão econômica de Alberta mudou o mapa político do Canadá. Em dez anos, o Partido Conservador, liderado por políticos de Alberta, reverteu uma política climática avançada que vigorou na década de 1990. Desde 2015, felizmente, o liberal Justin Trudeau tenta retomar uma política progressiva. Como destaca o filme, pode-se dizer que essa indústria provocou a maior mudança regressiva de política climática entre os países desenvolvidos.

O grande dilema vivido pelos protagonistas está entre defender a indústria petroleira local, e, consequentemente, os empregos e altíssimos salários necessários para um altíssimo custo de vida, ou ir-se de Fort McMurray e preservar a própria saúde. Lá, não existe uma comunidade mobilizada para a regulação ambiental e melhor qualidade de vida. Apenas celebrities vão ao local protestar contra a enorme emissão de carbono e o impacto no aquecimento global. Mobilização há pela defesa da indústria. Os trabalhadores locais vêm de todo o mundo. Diferentemente da Virgínia Ocidental, são nômades, sem laços comunitários, apenas passando pelo purgatório que pode levá-los ao desfrute da enorme soma de dinheiro lá conseguida ou à agonia de morrer de câncer, como ocorre com o namorado da narradora. A perspectiva das escolhas pessoais, nesse filme, traz a questão ambiental para um local mais íntimo, não apenas público, e nos faz concluir que poderíamos estar naquela situação. Esse é um ponto bastante forte em Éden Sombrio.

Vulcão de Lama: A Luta Contra a Injustiça traz também a temática da extração de combustível fóssil, nesse caso gás natural, dessa vez na Indonésia, onde o Estado de Direito ainda é bastante limitado, como veremos adiante.

Nos dois outros filmes (O Tribunal do Congo e A Terra dos Sábios), a extração dos recursos naturais dá-se em ambiente extremo de guerra civil. No leste do Congo, a exploração de diamante, ouro e cassiterita mostra a complexa relação entre empresas multinacionais de origem europeia, americana e chinesa, governo nacional, governos provinciais, forças de paz das Nações Unidas e as múltiplas milícias dirigidas pelos chamados senhores da guerra. Embora a questão dos recursos naturais esteja colocada, mostrando-se imbricada no contexto da guerra civil (que vem desde a década de 1960), da barbárie, da inexistência do Estado de Direito, são esses últimos os reais motivadores dos massacres, núcleo central do filme, e das batalhas que já exterminaram aproximadamente 6 milhões de pessoas nos últimos trinta anos. Já em A Terra dos Sábios, temos uma linha bastante diferente de abordagem, sendo também o eixo a guerra civil e não propriamente os recursos naturais (extração de lápis-lazúli e cultivo de papoulas para a produção de ópio). Lápis-lazúli é explorado em pequena escala de forma precária e dispersa no ambiente extremamente inóspito das montanhas afegãs, onde os exércitos afegão e americano combatem o Talibã. A quadrilha de adolescentes que ataca caravanas e comercializa os restos do material bélico soviético, além do ópio e do lápis-lazúli, relaciona-se indistintamente com os lados combatentes, guiada por mitos afegãos milenares. O filme, que lembra, pela abordagem mitológica, a cinematografia de Herzog, nos inunda com imagem e poesia únicas, sendo, apesar da dureza da guerra civil, uma espécie de descanso em meio ao peso das questões ambientais, econômicas e filosóficas difíceis e angustiantes dos outros filmes.

“A Terra dos Sábios”, de Pieter-Jan De Pue

Sob esse aspecto, aliás, Vulcão de Lama: A Luta Contra a Injustiça e As Cinzas do Carvão nos trazem, em suas conclusões, um pouco de esperança diante dos quadros dramáticos que apresentam. Em Vulcão de Lama: A Luta Contra a Injustiça, a adolescente protagonista do movimento pela indenização dos moradores dos 16 vilarejos atingidos pela lama expelida pela perfuração em busca de gás natural (que continuará jorrando pelos próximos 30 anos), termina conseguindo alcançar o sonho de cursar direito com os custos cobertos pela indenização finalmente recebida pela mãe depois de dez anos de reivindicação. O precário Estado de Direito na Indonésia, em que a falta de regulação ambiental continuará permitindo concessões incautas, como mostra o filme, terá, provavelmente, alguns de seus ativistas fortalecidos pela aquisição de conhecimento, podendo vir a constituir uma sociedade civil mais preparada para a defesa de seus ambientes e modos de vida. Em As Cinzas do Carvão, como vimos, a esperança vem da inclinação favorável para a produção de energia limpa, com menos poluição do ar local.

Cabe aqui uma reflexão sobre o impacto de cada filme em cada um de nós como indivíduos. Os estudos em neurociências mostram, com cada vez mais evidências, a preponderância do cérebro emocional e instintivo sobre o cérebro racional na percepção e tomada de decisões. Mostram também que os cérebros mais pessimistas sofrem mais, mas foram importantes para a sobrevivência de nossa espécie, enquanto que os mais otimistas sofrem menos, mas costumam ser negacionistas. Sob essa lente, como cada filme nos impacta? Sendo mais negativo ou positivo? Como agem a sonoplastia, a fotografia, a atuação e os efeitos especiais sobre nossa percepção? Éden Sombrio, por exemplo, impõe um ritmo à sucessão dos acontecimentos, culminados em um trágico incêndio florestal, que provoca uma angústia crescente, bastante “interessante” para retratar o dilema entre ganhar um bom dinheiro em pouco tempo e comprometer a própria vida fazendo isso. Não há qualquer saída para aquela situação, pois tem sido tendência da indústria petroleira a corrida pela exploração das fontes fósseis antes que as energias limpas tomem o mercado. Fort McMurray provavelmente ainda será retratada no futuro como uma cidade fantasma.

No Congo e no Afeganistão, as situações de guerra civil histórica e contínua são desesperadoras, e também não trazem qualquer esperança para aquelas populações. Há, no entanto, uma diferente percepção dessas situações extremas, devido às diferentes propostas cinematográficas: a primeira é bastante informativa e explícita nas violências cometidas, e a segunda, bem mais poética, e mesmo idílica, ao tratar as dores da guerra civil, em que irmãos se matam e continuarão a matar-se (são catorze etnias a dificultar uma identidade afegã), como parte intrínseca da vida no Afeganistão.

Para finalizar, esperamos ter contribuído para uma visão um pouco mais complexa e menos maniqueísta das realidades expostas nos filmes e propomos trazer essa visão para nossa realidade, a de nosso público brasileiro. Diversas pesquisas de opinião no Brasil têm mostrado, em comparação com outros países, uma população bastante favorável à proteção ambiental no nível discursivo. Apesar disso, a regulação ambiental tem sofrido contínuo retrocesso desde 2011, sem qualquer mobilização popular significativa. Aliás, quando se fala em aumento da gasolina e do diesel, as redes sociais são inundadas por protestos e os caminhoneiros ameaçam greves paralisadoras da economia do país, sem nenhuma contestação popular, como se o aumento do preço dos combustíveis fósseis não fosse bom para a mitigação das poluições locais e da emissão de gases estufa. É uma reflexão importante.

*EDUARDO VIOLA é Professor titular do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília e tem doutorado em Ciência Política pela USP. Foi professor visitante das universidades de Stanford, do Colorado, de Notre Dame e de Amsterdam. É membro de vários comitês científicos nacionais e internacionais e conta com oito livros e dezenas de artigos publicados em prestigiosos periódicos. Seu ultimo livro Brazil and Climate Change. Beyond the Amazon foi publicado por Routledge em 2018.

ANA FRAGA SCHWINGEL é ecóloga e especialista em políticas ambientais, com estudos em psicologia gestáltica e impacto das tecnologias disruptivas no indivíduo. Foi consultora legislativa da Câmara de Deputados durante 25 anos. Atualmente, atua como coach associando a vasta experiência organizacional com os conhecimentos e vivências da natureza para auxiliar no desenvolvimento pessoal de forma integral.