16 de maio de 2019

Cinema Político e de Resistência – por Luiz Carlos Merten | Homenagem a Silvio Tendler

Por Luiz Carlos Merten*

“Fio da Meada”, de Silvio Tendler

São poucos os documentaristas que, em todo o mundo, podem gabar-se de haver arrastado aos cinemas milhões de espectadores para ver seus filmes. Silvio Tendler fornece um desses raros exemplos.

Os Anos JK, em 1980, faturou 800 mil espectadores; O Mundo Mágico dos Trapalhões, em 1981, 1,8 milhão; Jango, em 1984, 1 milhão, e O Veneno Está na Mesa 2, de 2014, já exibido online, foi assistido por mais de 5 milhões de pessoas. Quando o Brasil emergia dos anos de chumbo da ditadura militar, que tanta gente hoje quer negar que houve, e vivia um processo de abertura democrática, Jango virou o filme das diretas já. Eu me lembro de como, nos cinemas, em Porto Alegre, a gente aplaudia durante as sessões, cantava e até chorava com Milton Nascimento. “Coração de Estudante” virou um hino, como o Hino Nacional que Fafá de Belém cantava nos comícios que mobilizavam multidões.

Silvio Tendler! O que seria seu primeiro filme, sobre a Revolta da Chibata, depois que ele conheceu o lendário Almirante Negro, João Cândido, simplesmente desapareceu do mapa, porque o responsável pela guarda dos originais queimou o filme para evitar complicações com os milicos. Tendler viajou para o Chile, na euforia do governo da Unidade Popular de Salvador Allende, foi para a França, onde se ligou a Chris Marker e Jean Rouch, papas do cinéma vérité. Formou-se em História pela Universidade de Paris e fez seu mestrado na École de Hautes Études, com uma tese sobre Joris Ivens. Tendler já sinalizava que o cinema que queria fazer seria político.

Os Anos JK recriam a trajetória política de Juscelino Kubistchek, começando com a promulgação da Constituição de 1946. Surge esse jovem prefeito de Belo Horizonte, que contrata dois comunistas para erguer a igreja da Pampulha, que será sua plataforma para o governo de Minas. Arauto de uma ideologia desenvolvimentista que promete fazer o País avançar cinquenta anos em cinco, JK elege-se presidente do Brasil com a promessa de transferir a capital para o Planalto Central, criando Brasília. A indústria automobilística desenvolve-se, o som (internacional) do Brasil vira a Bossa Nova e Tendler põe na tela o que era o estilo, a maneira de ser e governar de JK. O novo populismo, pós-Getúlio. Mais ou menos na mesma época, Ana Carolina documentou, ou melhor, interpretou psicanaliticamente o mito de Getúlio (Getúlio Vargas, 1974) como o Pai, em Trabalhadores do Brasil: “Todo o povo brasileiro chorou/Morreu o presidente…”. JK, eterno otimista, tinha o espírito conciliador. Minimizava tensões sociais e conflitos partidários, fazia concessões.

Voltar a Juscelino, naquele momento, enfatizava o espírito de redemocratização. Com João Goulart, o processo democrático fora interrompido. Como, quando e por que se depõe um presidente? Tendler pega carona no documentarista cubano Santiago Alvarez, em seu filme sobre a execução do general Pratt, no Chile: Como, Por Que y Para Qué se Asesina a Un General? Como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, Jango assegurou direitos aos trabalhadores. Como presidente, defendendo a bandeira do desenvolvimento nacionalista, encaminhou as reformas de base que o Brasil necessitava, inclusive a agrária. Foi etiquetado como comunista – o fenômeno da Revolução Cubana era recente e alarmava as elites brasileiras –, e deposto. Herói injustiçado ou agente comunista inexperiente? O filme posiciona-se contra o golpe, adota a bandeira da legalidade, deixa implícito que é preciso retomar o processo democrático. Diretas já!

Quando Silvio Tendler fez esses filmes, os tempos eram outros. Em 1968, Stanley Kubrick já mostrara o super computador Hal-9000 assumindo o controle da nave de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Dois anos depois, Joseph Sargent já propusera Colossus 1980, em que, em plena Guerra Fria, os militares dos EUA entregam o controle do sistema de defesa do país a outro computador, que enlouquece. Não havia redes sociais, havia a desconfiança da máquina. Seria impensável imaginar presidentes como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, governando pelo Twitter. O mundo mudou muito e, nesse processo, o cinema de pesquisa e investigação histórica de Tendler virou referência, inclusive universitária. Seus filmes viraram temas de estudo em universidades, e o próprio Tendler tornou-se professor de cinema. Hoje, quem pesquisa na internet descobre que lhe colaram a etiqueta de cineasta dos vencidos, ou dos “Sonhos Interrompidos”, por seus filmes sobre JK, Jango, Carlos Marighella ou Glauber Rocha.

“Utopia e Barbárie”, de Silvio Tendler

Muito antes que Wagner Moura fizesse sua ficção sobre Marighella, Tendler já traçara o retrato falado do guerrilheiro, em 2001. Dois anos depois veio Glauber – O Filme, Labirinto do Brasil, e o título já deixa claro que, por meio do artista que estudou (e sonhou transformar) o País, o que ele está querendo é entender, ou pelo menos fazer uma proposta de discussão da nossa brasilidade. Seu recorte é sempre de esquerda, na contracorrente desse direitismo tacanho que se instalou no Brasil e transformou a caça aos comunistas inexistentes e o desmantelamento do que chama de marxismo cultural em pedras de toque do (des)governo vigente. Os títulos já revelam a intenção: Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá; Memória do Movimento Estudantil; Tancredo – A TravessiaMilitares da Democracia – Os Militares Que Disseram Não; Os Advogados contra a Ditadura – Por Uma Questão de JustiçaSonhos Interrompidos, etc.

No total, são mais de 70 filmes de longa, média e curta-metragem, em formato documental, além de 12 séries. Uma obra extensa e respeitável que tem valido a Silvio Tendler prêmios e homenagens pelo Brasil e pelo mundo afora. Ele recebe agora a Homenagem da Ecofalante, e, por se tratar de um evento ligado a questões ambientais, um outro aspecto da obra de Tendler ganha destaque. O que ele percebeu é que não basta discutir e tentar entender os grandes movimentos políticos, os golpes. Política e economia andam indissociáveis, e nunca pelo favorecimento das massas. O mundo é dominado pela desigualdade social e, em países como o Brasil, com escandalosa impunidade, o agronegócio tem prosperado às custas do desmatamento, do avanço sobre territórios indígenas e quilombolas e de quantidades colossais de venenos químicos, usados como fertilizantes agrícolas, a um tal ponto que uma parlamentar que tem sido porta-voz do setor tornou-se conhecida no Congresso brasileiro como ‘musa do veneno’. E surgiram Agricultura Tamanho Família, O Veneno Está na Mesa 1 e 2Dedo na Ferida, que venceu a Competição Latino Americana da Mostra Ecofalante de 2017, e O Fio da Meada, último documentário do diretor, que estreia na 8ª edição do festival.

Completam-se em 2019 dez anos de Utopia e Barbárie. Não importa se Tendler fez filmes melhores, ou de maior sucesso de público e crítica. Esse é especial, de alguma forma, para o autor do texto: é a obra síntese do cineasta, o seu legado. Produto de uma pesquisa extensa que consumiu 20 anos, o filme vai ao pós-guerra (1945) para mapear e estudar as grandes mudanças que, no século 20, terminaram por moldar o mundo no século XXI. Como narrador, e comentando os acontecimentos, Tendler revisita as lutas pela independência das colônias africanas (e não apenas) e os golpes militares na América Latina. O Chile, tão importante para ele, rende alguns dos melhores momentos no filme. Chile esse que hoje virou avatar dos planejadores econômicos que querem voltar à Escola de Chicago para resolver os problemas do Brasil. O mesmo Chile que tem hoje mais gente catando lixo nas ruas de Santiago do que
jamais teve em sua história – eu sei, eu constatei isso em janeiro de 2019. Mas o que isso importa para os que só querem governar e legislar em nome dos poderosos? Por mais imoral que seja, a desigualdade é um alimento para a autofagia dos que professam a lei do mercado.

O Chile também é um emblema para Tendler. A utopia de Allende, a barbárie do golpe do General Augusto Pinochet. A Guerra do Vietnã. Quando lançou seu filme, Tendler advertia que se tratava de um filme não acabado, ou melhor, inacabável. Intuía ele que a barbárie, que talvez nunca tivesse ido, voltaria com mais força – no Brasil, nos EUA, no mundo? Tendler percorre 15 países, entrevista intelectuais, filósofos, artistas, jornalistas, historiadores, economistas. A grande e a pequena história são revistas de diferentes ângulos e perspectivas. O próprio Tendler participa, como personagem. Letícia Spiller, Chico Diaz e Amir Haddad expressam seu pensamento. São impactantes – uma sobrevivente de Hiroshima narra cenas que, para ela, representam o inferno; Eduardo Galeano, o grande escritor de As Veias Abertas da América Latina, diz que sonhar é o papai e mamãe de todos os direitos, pois todos os demais derivam dele; e Pinochet, o monstro. Ao ser indagado sobre fossas comuns para seus opositores, retruca com cinismo: “que baita economia, hein?”.

O desprezo. Pior que isso, o ódio pelo outro. Narciso acha feio o que não é bonito – ele. Tendler, em Utopia e Barbárie, evoca movimentos populares, o povo na rua lutando por seus direitos. Não a massa insuflada pelo ódio que, a partir das redes sociais, sequestrou o poder no Brasil, nos últimos anos. Seu cinema é um testemunho de luta, de resistência. Glauber também bradava, em Deus e o Diabo na Terra do Sol: “Mais fortes são os poderes do povo!” Tendler nunca deixou de acreditar, de sonhar. Contra o agronegócio, defende a agricultura familiar (Agricultura Tamanho Família). “O Veneno Está na Mesa”, mas, na cadeia de produção, o agrotóxico atinge desde o trabalhador que aplica o produto até o consumidor que come o alimento. Tudo se encaixa com coerência na obra de Silvio Tendler, que é, toda ela, uma crítica às forças do reacionarismo, econômico e político. Resistir é preciso. A doença que pregou o diretor numa cadeira de rodas não paralisou sua capacidade de pensar, refletir, lutar. Tornou-o mais resiliente. A Homenagem da Ecofalante é, mais que justa, necessária.

*LUIZ CARLOS MERTEN é jornalista e crítico de cinema. Teve passagens pelos jornais Folha da Manhã e Diário do Sul. Atualmente, publica suas críticas no jornal O Estado de S. Paulo. É autor do livro Anselmo Duarte: O Homem da Palma de Ouro, publicado pela Imprensa Oficial, entre outros.