10 de maio de 2018

As Consequências e a Coragem de Olhar para Elas – por Denis Russo Burgierman | Temática Preservação

por Denis Russo Burgierman

Cena do filme Troféu, de Shaul Schwarz e Christina Clusiau. Imagem: divulgação

Lanternas acesas na mata, quatro pessoas se aproximam sorrateiras de um ninho. Protegidas pela escuridão da noite do Pacífico Sul, avançam de surpresa e apanham um filhote indefeso de uma ave marinha, pelo pescoço. A imagem é dolorosa de se ver: uma moça enfia fundo um canudo goela adentro do filhote, e começa a bombear. A avezinha fecha os olhos, sem poder reagir. Dá para ver seu pescoço e seu abdômen se avolumando, enquanto enchem de água. Até que não aguenta mais e vomita numa bacia. A câmera focaliza a bacia: boiando na água regurgitada, surge um pedaço de tampa de caneta esferográfica, um disco achatado que um dia já fechou uma garrafa de água mineral, uma bucha de parede para fixar parafusos, e mais dezenas de pedaços multicoloridos de plástico, alguns deles cheios de pontas afiadas.

A moça é Jennifer Lavers, cientista especialista em aves marinhas, uma das personagens que conduzem o documentário Triste Oceano, da diretora australiana Karina Holden, sobre o colapso da vida no oceano. Jennifer passa dias sem fim viajando de uma a outra ilha do Pacífico, cuidadosamente provocando o vômito de filhotes de aves migratórias, num esforço para tentar salvar suas vidas. O que achei mais chocante nesta cena – entre tantas cenas chocantes que vi nos cinco filmes deste eixo temático da 7ª Mostra Ecofalante – foi a familiaridade dos objetos na bacia. Não era minha esta garrafa d’água? Ah, está aí a tampa que sumiu da minha Bic.

Todos os dias, você, eu e os outros 7 bilhões de nós cobrimos o mundo de objetos eternos de plástico. Aí o planeta é enxaguado pelas chuvas e este plástico todo escoa terra abaixo até o mar. Cabe a Jennifer olhar nos olhos de quem sofre as consequências dessa cadeia de eventos. Algumas das aves que ela encontra expelem mais de três centenas de pedacinhos de plástico. Nunca acontece de ela encontrar uma ave que não tenha plástico nenhum dentro de si. Nunca.

Todos esses cinco filmes nos forçam a encarar consequências – em especial, as consequências sentidas pelos animais que deram o azar de precisar dividir a Terra com o Homo sapiens. Assistir a eles envolve a difícil tarefa de olhar nos olhos de outros seres dotados de inteligência e consciência e contemplar neles o sofrimento que nossa espécie causa.

Metade da população animal da Terra foi exterminada nas últimas décadas, a bala, fogo, fome ou calor. De cada duas espécies animais, uma perdeu 80% de sua população ou mais no último século, porque cruzou nosso caminho. Quem mais está sofrendo é quem é mais difícil de encarar: os animais grandiosos, de olhar sábio e porte imponente. As baleias, os grandes primatas, os leões, os elefantes, os rinocerontes, as girafas, as tartarugas – bichos de posição elevada nos ecossistemas, que simplesmente não conseguem sobreviver em meio à destruição massiva de seus hábitats.

Triste Oceano desnuda as consequências da exploração industrial dos mares e da quantidade astronômica de resíduos que deixamos escoar todos os dias de nossas cidades, e nos força a encarar o que talvez preferíssemos que ficasse escondido debaixo da superfície. Usando como guias ativistas e pesquisadores que amam o oceano, como Jennifer, o filme não nos poupa de cenas sangrentas (e lindas) do massacre dos tubarões para lhes serrarem as barbatanas, do extermínio em massa dos atuns, da mortandade de tartarugas enroscadas em redes abandonadas, da tragédia que está dizimando os corais.

Essa mesma história de devastação, só que em terra firme, é contada de um jeito bem diferente na fábula As Estações, uma produção épica dirigida pelos franceses Jacques Perrin e Jacques Cluzaud, a mesma dupla que fez os impressionantes Migração Alada e Oceanos. A proposta do filme é curiosa: usando imagens reais de animais na natureza europeia, As Estações tenta, quase sem narração, contar a história dos últimos 80 mil anos no continente. No início do filme, só se veem ursos, lobos, cavalos, raposas. Com o tempo, um outro animal começa a aparecer na beira das imagens: o homem. Logo as consequências surgem. No final do filme, os humanos estão no centro das cenas, erguendo cidades, fumegando plantações e distribuindo chumbo, enquanto os outros animais fogem. Ou morrem.

Cena do filme Alforria Animal, de Chris Hegedus e DA Pennebaker. Imagem: divulgação

Alforria Animal é um filme simples que nos obriga a encarar certas consequências de nossa produção científica e da nossa indústria de entretenimento: o encarceramento descuidado de vários chimpanzés, seres mais do que 99% humanos. São animais que participaram de pesquisas científicas, até mesmo do programa espacial americano, ou estrelaram filmes e shows, e que hoje estão presos por humanos em condições inadequadas. O filme, dirigido pelos americanos D. A. Pennebaker e Chris Hegedus, acompanha a batalha jurídica do advogado Steven Wise para conseguir que a Justiça americana considere os chimpanzés pessoas, portanto providas de direitos, inclusive o de serem livres. Não é fácil fitar os olhos deprimidos dos primatas, ainda mais depois de ver suas evidentes demonstrações de inteligência e empatia.

Mas as cenas mais difíceis de assistir este ano estavam em dois filmes que abordam um tema difícil: a caça esportiva. São duas produções bem diferentes: Safari, do austríaco Ulrich Seidl, é uma primorosa produção dinamarquesa, cuidada no mínimo detalhe, enquanto Troféu, de Christina Clusiau e Shaul Schwarz, é um telefilme da CNN, com tratamento estético e amarração narrativa só um pouquinho melhores do que os de um telejornal. Apesar das diferenças, os dois filmes são bem complementares e pintam juntos um quadro bem complexo sobre a caça de animais selvagens na África.

Uma das coisas mais desconfortáveis que Troféu faz ver é que, por mais horrendo que o hábito da caça possa parecer a alguém, muitas vezes ele pode ser a única esperança de salvar espécies ameaçadas. Caçadores que pagam caro para abater um animal às vezes são o único  incentivo para evitar a exploração industrial da floresta, análoga à exploração do mar retratada em Triste Oceano, que resultaria na morte de todos os animais. Afinal, neste mundo de hoje, nada que não tem valor financeiro tem chance de sobreviver diante da industrialização de tudo.

Por mais bizarros que sejam os personagens de Safari – europeus do norte com roupas camufladas e grandes rifles, que chamam animais de “peças” e gastam fortunas pelo prazer de matar na África –, ao menos seu olhar é obrigado a encarar a consequência do que fazem. A câmera do filme corre atrás dos caçadores ofegantes e os flagram tremendo, chorando, silenciando, quando fitam o animal em agonia – ao contrário das pessoas que matam porque jogam plástico no chão, ou soltam redes no mar, ou compram produtos que implicam na destruição da floresta, que nunca veem os animais tombarem como consequência de seus atos.

Mas é claro que os caçadores só veem até certo ponto. Depois do tiro fatal, eles ajeitam a carcaça e posam para uma fotografia que um dia vai adornar uma parede, talvez ao lado da cabeça empalhada do bicho abatido. E vão embora felizes com o tiro certeiro. Sobra a carcaça lá, para ser arrastada pelo guia africano, depois esquartejada a golpes violentos e esfolada com a ponta de facas velhas. E o filme continua seguindo a cena, enquanto tudo isso acontece, exibindo cada detalhe sanguinolento até a última consequência do ato de puxar o gatilho. Sem nos poupar de absolutamente nada. Como deveria ser sempre, talvez.

Nenhum destes cinco filmes é puro desfrute – nem mesmo As Estações, que, embora feito para maravilhar, é bem explícito ao mostrar que a história da humanidade é uma história de devastação. Os cinco vão exigir de quem entrar na sala a coragem de olhar de frente para o que somos. E para o que causamos.

 

DENIS RUSSO BURGIERMAN é jornalista e escreveu livros como Piratas no Fim do Mundo (2003), sobre caça às baleias na Antártica, e O Fim da Guerra (2011), sobre a guerra às drogas. É colunista do Nexo Jornal e foi diretor de redação de publicações como a “Superinteressante” e a “Vida Simples”. Comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.

Serviço:
7ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental
31 de maio a 13 de junho de 2018
entrada franca
Locais:
Reserva Cultural,
Espaço Itaú de Cinema – Augusta,
Centro Cultural Banco do Brasil,
Circuito Spcine Lima Barreto (Centro Cultural São Paulo),
Circuito Spcine Paulo Emílio (Centro Cultural São Paulo),
Circuito Spcine Olido,
Circuito Spcine Tiradentes,
Unibes Cultural,
Fábrica Brasilândia,
Fábrica Capão Redondo,
Fábrica Cidade Tiradentes,
Fábrica Itaim Paulista,
Fábrica Jaçanã,
Fábrica Jardim São Luís,
Fábrica Parque Belém,
Fábrica Sapopemba,
Fábrica Vila Curuçá,
Fábrica Vila Nova Cachoeirinha.
Circuito Spcine CEUs
CEU Aricanduva
CEU Butantã
CEU Caminho do Mar
CEU Feitiço da Vila
CEU Jaçanã
CEU Jambeiro
CEU Meninos
CEU Parque Veredas
CEU Paz

CEU Perus
CEU Quinta do Sol
CEU São Rafael
CEU Três Lagos
CEU Vila Atlântica
CEU Vila do Sol

Realização: Ecofalante, Ministério da Cultura, Governo Federal, Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo
Correalização: Spcine, Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Instituto Goethe
Patrocínio: Sabesp, Tigre, Kimberly-Clark
Apoio: White Martins, Pepsico e ICS
Lei de Incentivo à Cultura e ao Programa de Apoio à Cultura (ProAC).
facebook.com/mostraecofalante
twitter.com/MostraEco
instagram.com/mostraecofanlate​
mostraecofalante.wordpress.com
​www.ecofalante.org.br

Atendimento à Imprensa:
ATTi Comunicação e Ideias – Eliz Ferreira e Valéria Blanco
(11) 3729.1455 / 3729.1456 / 9 9105.0441