16 de maio de 2019

A Humanidade por um Fio – por André Biernath

Texto sobre os filmes da temática Saúde do Panorama Internacional Contemporâneo

por André Biernath*

 

Além do polegar opositor, da posição bípede e do poder de raciocínio, o ser humano se distingue dos outros animais por uma capacidade única de criar maneiras de se autodestruir. É impressionante a quantidade de vezes que as mais variadas ameaças afetaram a vida de milhões de pessoas, muitas delas inocentes e sem nenhuma capacidade de defesa. Exemplos não faltam: guerras, epidemias ou o simples descaso das autoridades com as políticas públicas aparecem todos os dias nos noticiários de jornais, nos programas de TV e nos portais da internet.

Essa gana maluca de extinção é um dos fios que une os cinco documentários do eixo temático Saúde da 8ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. Ao mostrar realidades assustadoras e quase distópicas, as obras audiovisuais selecionadas suscitam diversos estágios de indignação e mostram como todos somos vulneráveis a diversos eventos e fenômenos que podem simplesmente aparecer em nossas vidas e mudá-las para sempre.

O longa-metragem Frente Atômica, dirigido por Rebecca Cammisa, acompanha o drama dos moradores da cidade de Saint Louis, no estado americano do Missouri. Durante os anos 1940 e 1950, o município foi palco do enriquecimento e do processamento de urânio, substância química utilizada para a produção das bombas atômicas que deram fim à Segunda Guerra Mundial e ditaram o ritmo de temor durante a Guerra Fria nas décadas seguintes.

O problema é que boa parte dos dejetos que sobraram dessa corrida armamentista foram simplesmente largados em grandes bolsões subterrâneos. Com o passar do tempo e a ação da natureza, esses produtos altamente danosos à saúde caíram num rio, que passa pela região e impregnou a terra de parques públicos. Como se não bastasse, o principal depósito desse lixo tóxico começou a apresentar um comportamento estranho: o aparecimento de grandes rachaduras na terra e o escape de urânio, rádio e outros elementos para a atmosfera.

Em paralelo, os moradores passaram a estranhar o aumento do número de casos de doenças relacionadas à radioatividade, especialmente alguns tipos de câncer. Alarmadas, algumas mulheres fundaram um movimento popular que cobra ações concretas do governo para estancar essa sangria. Nomeado de Just Moms1, o grupo é o grande foco do documentário, que registra as reuniões e os protestos. No meio do caminho, chama a atenção o drama diário de cada uma das mães e esposas, preocupadas com o bem-estar de seus filhos e de suas famílias, enquanto tentam sensibilizar burocratas e especialistas capazes de implementar alguma solução.

“Soldados Atômicos”, de Morgan Knibbe

A bomba atômica também dita o ritmo de Soldados Atômicos, de Morgan Knibbe. O curta-metragem dá voz aos soldados sobreviventes dos testes com armas nucleares a partir da segunda metade do século XX. Durante anos, eles foram proibidos de falar sobre a experiência aterrorizante pela qual passaram ao lado de mais de 14 mil recrutas treinados pelas forças armadas americanas. Infelizmente, poucos sobreviveram até hoje para finalmente compartilhar seus relatos. Esses homens recebiam orientações de se protegerem em campo aberto, com as mínimas condições, enquanto bombas atômicas eram detonadas nas redondezas. Eles eram feitos de cobaias e sentiram na pele e na mente as reações terríveis dessas experiências desumanas. Aqueles que não sumiram ou morreram quase que num passe de mágica tiveram que levar daí em diante uma vida de sofrimento físico e psíquico.

Durante a entrevista, vários não aguentam e vão às lágrimas diante das câmeras. Outros seguem tentando responsabilizar o governo pelo fato de terem desenvolvido doenças, como o câncer, por causa da radiação. Será que algum dia esses danos serão reparados e essas pessoas verão a justiça? Eis a dúvida indignada que fica enquanto assistimos atônitos aos créditos do filme.

Mas é importante mencionar o fato de que a ganância e a vilania não estão restritas às instâncias do poder público. Muitas empresas colocam o lucro à frente do bem-estar e da saúde de seus clientes. Essa é a conclusão que podemos tirar do longa-metragem Operação Enganosa, de Kirby Dick. Ao contrário dos remédios, que passam por uma avaliação criteriosa antes de sua aprovação, muitos dos dispositivos médicos são liberados para a comercialização sem a exigência de estudos com seres humanos. Aparelhos como próteses, robôs cirurgiões, marcapassos e métodos contraceptivos de longa duração chegam ao mercado com o aval da Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória americana equivalente à ANVISA brasileira, sem nenhum teste que comprove a sua segurança e eficácia.

O grande perigo é que muitas dessas novidades, vendidas como disruptivas e revolucionárias, provocam as mais severas reações quando inseridas no organismo dos pacientes. O caso mais emblemático de todos é o Essure, um pequeno dispositivo de metal que impede a gravidez e ajudaria a fazer um planejamento familiar mais seguro e duradouro. Fabricado por uma gigante farmacêutica, ele era implantado nas trompas das mulheres por meio de um procedimento minimamente invasivo feito no próprio consultório do ginecologista em menos de 45 minutos.

Parece simples e prático, não? Pois a história mostrou justamente o contrário: milhares de mulheres sofreram complicações após seu uso e convivem hoje com dores fortes e incapacitantes. O filme segue a sua luta para proibir a venda do Essure e todas as barreiras que encontram no meio do caminho — incluindo o lobby das empresas e a falta de interesse das autoridades em ouvir e atender as demandas da população.

Se, como vimos nas três produções mencionadas anteriormente, a situação é caótica diante de problemas previsíveis e evitáveis, o que esperar quando o alarme soa do nada, sem que ninguém esperasse uma emergência tão grave? Pois esse é o retrato de Ebola: Sobreviventes, de Arthur Pratt, uma abordagem nua e crua sobre o ebola, uma doença grave provocada por um vírus que causa hemorragias intensas, falência de órgãos e morte. Apesar de serem registrados surtos da enfermidade desde os anos 1970, a epidemia que assolou Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri a partir de 2014 deixou o mundo todo assustado por sua velocidade e mortalidade — em pouco tempo, foram registrados mais de 4.200 casos, com 2.200 óbitos.

O longa-metragem coloca o trabalho de enfermeiras e motoristas de ambulância em contraponto à própria experiência de Arthur Pratt, aterrorizado diante da ameaça invisível que coloca em risco a vida de sua própria mulher, grávida do primeiro filho do casal. Ao longo das cenas, fica clara a falta de uma estrutura básica de saúde capaz de dar conta de tantos casos. Campanhas de saúde veiculadas em rádio, televisão e outdoors tentam orientar a população para adotar medidas básicas de higiene e de cuidados com o corpo daqueles indivíduos que acabaram de morrer em decorrência da infecção.

No meio de todo o alvoroço, a história de Mohamed Bangura é a que mais sensibiliza o público: motorista de ambulância, ele flerta com o ebola desde o início da epidemia e faz tudo que está ao seu alcance para transportar os pacientes até a unidade de saúde mais próxima — nem que para isso seja necessário subir o morro e trazer o doente nas costas. Admirado por seus colegas de trabalho, Bangura é vítima de seu próprio heroísmo e vira o epicentro de um conflito entre os profissionais de Serra Leoa e os especialistas estrangeiros, que vieram para ajudar e muitas vezes acabam desrespeitando hierarquias e costumes locais.

“Mulheres Contra a AIDS”, de Harriet Hirshorn

A emergência do ebola pode aprender significativamente de outra epidemia que assolou o planeta num passado recente: a AIDS, provocada pelo vírus HIV. Quando os primeiros casos começaram a ser relatados, entre o final da década de 1970 e o início de 1980, a doença foi caracterizada pejorativamente de “peste gay”, pois a maioria dos acometidos eram homens que faziam sexo com outros homens. Durante muito tempo, a moléstia esteve atrelada somente a esse perfil e ignoraram-se outros grupos que também eram profundamente afetados pela condição, especialmente as mulheres.

O média-metragem Mulheres Contra a AIDS, de Harriet Hirshorn, faz uma justa homenagem às ativistas que, desde o início, lutaram para que as mesmas condições de tratamento da AIDS fossem oferecidas à parcela feminina acometida pelo vírus. Parece surreal, mas, por longos anos, os remédios e toda a rede de cuidados e assistência só eram oferecidos aos homens infectados. A justificativa (absurda) era de que os estudos iniciais haviam sido feitos com eles.

A obra viaja por diversos pontos do planeta — de Burundi e Nigéria ao extremo sul dos Estados Unidos — e conta a história de diversas mulheres HIV positivo que fizeram diferença na sociedade. Graças ao esforço delas, muitas coisas foram modificadas para melhor e ajudaram a salvar milhares de vidas. Porém, isso não significa que o trabalho está concluído: a taxa de infecção vem aumentando no público feminino. Para ter ideia, elas atualmente já representam 51% dos casos em determinadas regiões do globo.

Como todos os documentários selecionados nos provam, a lista de ameaças à saúde é vasta e precisamos ficar atentos o tempo todo para que nossos direitos mais básicos não sejam atacados e violados. Mais do que apenas nos alarmar e deixar paranoicos, os cinco filmes são fontes de inspiração: por mais que esses perigos existam e estejam à nossa porta, nós temos o poder de lutar contra eles.

Ora, se o ebola afetou (e afeta) muita gente na África, aqui no Brasil temos dengue, zika, chikungunya e febre amarela em plena expansão — e isso sem mencionar o HIV, que segue em alta em todos os continentes. Se os americanos ainda sofrem com os desdobramentos dos projetos de bombas atômicas, em nosso país tivemos o acidente com o Césio-137 na cidade de Goiânia em 1987. Por fim, muitas das empresas que vendem dispositivos médicos nos Estados Unidos também atuam livremente por aqui.

O que podemos aprender e modificar por meio das experiências internacionais e, claro, de nossa própria vivência? Resta a nós arregaçarmos as mangas, sairmos às ruas e cobrarmos as autoridades por políticas públicas mais rápidas e efetivas. Um viva ao cinema como uma das mais poderosas ferramentas de reflexão e aprimoramento da sociedade!

O nome do movimento, em inglês, traz um jogo de palavras, uma vez que “just” pode querer dizer tanto “apenas” (Apenas Mães) quanto “justas” (Mães Justas).

*ANDRÉ BIERNATH, 28 anos, é jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-graduado em comunicação e mídias digitais pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Trabalha há 8 anos como repórter da Revista Saúde É Vital, da Editora Abril. Pela publicação, cobriu mais de 60 congressos científicos nacionais e internacionais e ganhou cinco prêmios de jornalismo. É um dos fundadores e o primeiro presidente da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência).